Primeira Carta de São João


Primeira Carta de São João



Prefácio
A pessoa que empreende a leitura sistemática da 1Jo, de início, se depara com a dificuldade extrema de entender de que João está querendo falar. O exórdio é uma exclamação emocionada de quem tenta explicar a novidade daquilo que ele chegou  a entender. A sua análise se torna impossível porque falta a compreensão do conteúdo de toda a carta e da convicção que o inspira. A duras penas, voltando continuamente a corrigir as análises das perícopes que se seguem, alcança-se a profunda emoção que levou João a se dirigir aos fiéis das suas comunidades. Movido pela mais séria preocupação de Apóstolo queria que aqueles que dele tinham recebido a mensagem de Jesus, nela perseverassem pela prática da purificação dos pecados, da observância dos mandamentos dele, a fim de ter em si a caridade divina, e estivessem em condições de guardar a fé em Jesus Cristo Filho de Deus. As retomadas sobre os temas apresentados na primeira parte da carta são fundamentais para uma mais completa compreensão da doutrina que João quer transmitir. Difícil, todavia, continua o entendimento da linguagem que o Apóstolo utiliza. Entendida a motivação da carta, detectados os temas e decifrada a linguagem, no fim, a carta acaba se revelando a mais preciosa exposição do caminho da vida cristã. Essas serão as etapas pelas quais necessariamente terá que passar quem quer chegar a dominar o pensamento de João. Há momentos em que se tornam necessárias análises detalhadas, porque há textos que as exigem seja pela dificuldade da linguagem, com pela importância da doutrina.

(1) 1Jo Introdução

    Chave de leitura
    
    Estamos diante de uma carta. Seu autor é o Apóstolo João. Sua preocupação pastoral é aquela de promover a vida cristã nos
 fiéis.
    Para João, a vida cristã é um reflexo da própria Vida Trinitária. É Amor, que pode ser constatado pela obra da Redenção. Deus entrega o Filho à Morte. O Filho dá a vida pelos irmãos. O cristão, enquanto vive dando a vida pelos irmãos, realiza em si a vida de Deus. O Espírito, que é a Verdade, é aquele que lhe faz compreender tanto
 a natureza do Amor que está em Deus, como, também, a natureza do reflexo desse amor nele.
    Foi à luz do Espírito que os Apóstolos chegaram à compreensão da Pessoa divina de Jesus. Tudo o que dele ouviram e viram, contemplaram e apalparam, os levou, pela ação do Espírito, a compreender a condição de Jesus no seu princípio, isto é, a compreender que ele é, em Deus, “Aquele que é desde o princípio” (2,13), como o é o Pai (Ap 1,4). Jesus é o Cristo da profecia, que é Vida, como o Pai e o Espírito, que é, portanto, o Verdadeiro. É por ele que estamos no Verdadeiro.
    À luz dessas verdades, às quais nos conduz o Espírito que Jesus nos mereceu com a sua Morte, compreendemos a grandeza da nossa vocação de sermos filhos, chamados a ver a Deus como ele é. Por isso, devemos viver a purificação dos pecados no Sangue de Cristo. Ela nos levará à plena caridade (2Pd 1,3-10). Trata-se de uma exigência ilustrada por uma metáfora que explicita a natureza do Verdadeiro. Deus é luz. Nós não podemos mais caminhar nas trevas, isto é, compactuar com o pecado. Aliás esse é o critério pelo qual podemos dizer se somos de Deus ou do diabo (3,7s).
    Ao mesmo tempo em que nos preocupamos com a purificação dos pecados, devemos viver segundo os mandamentos que Jesus nos deixou porque esta é a condição para permanecermos nele e, por ele, em Deus. Quem não vive segundo os mandamentos que Cristo nos deixou não tem em si o amor de Deus, porque, de fato, não ama o irmão.
   Há uma terceira condição que deve ser vivida para que permaneçamos em Deus e Deus em nós: crer que Jesus é o Filho. Esta é uma verdade à qual os Apóstolos chegaram pelo testemunho que o Espírito deu 
 a eles quando contemplaram Jesus na sua condição gloriosa de ressuscitado e tocaram nele para se certificar que não era um espírito. Desse mesmo Jesus, o Espírito fez compreender a João que, transpassado pela lança e jorrando do seu lado aberto a Água da vida fruto do seu sacrifício, realizava em si a figura do Filho do Homem, a Glória de Iahweh, o Novo Templo. A atitude que nos garante a vida eterna pela fé em Jesus Filho de Deus é a nossa comunhão de fé com os Apóstolos. De fato, abraçamos essa fé diante da doutrina que nos transmitiram e nós a abraçamos porque selados pelo mesmo Espírito que levou os Apóstolos a crer.

    
A forma de exposição que João adotou
    
   Afirmou, em primeiro lugar, a condição divina de Jesus e a apresentou com os termos do prólogo de Jo 1.
    Deixou claro, desde o início, a condição de testemunha em que ele e os outros Apóstolos foram constituídos.
    Acenou à importância que deve ser dada à vida divina recebida pela pregação apostólica.
   A vida divina que compreendemos pela ação do Espírito da Verdade deve ser cultivada em nós segundo a Verdade, porque Deus é Luz.
   Reconheceremos que ela de fato vive em nós se estivermos vivendo o mandamento novo de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Ama o seu irmão aquele que pratica os mandamentos que Jesus nos deixou, resumidos no mandamento do amor ao irmão. É então que andamos na Luz.
Lembrados que recebemos o perdão dos pecados no Nome de Jesus, que estamos em comunhão de vida com “Aquele que é desde o princípio”, que por Ele vencemos o Maligno,
lembrados que estamos em comunhão com o Pai e com o Filho e que a Palavra nos torna fortes contra o Maligno,
radicalizemos contra o mundo, não deixando sermos subjugados pelas concupiscências,
para preservar em nós o amor de Deus, fazendo a vontade de Deus.
Fiquem os fiéis com a doutrina que abraçaram em virtude da ação do mesmo Espírito que se revelava nas palavras dos Apóstolos quando anunciavam a Boa Nova. Não se deixem desencaminhar por falsos profetas para não serem encontrados longe de Cristo no Dia da sua Vinda. 
Através de uma retomada (2,29-3,10), João aprofunda a análise da doutrina da purificação dos pecados (1,8-2,2). Ela é condição de vida eterna em nós e de vida em Deus, quando o veremos face a face.
3,11-24 É outra retomada pela qual aprofunda o que tratou do novo mandamento em 2,3-11.
4,1-6 É uma terceira retomada pela qual reafirma o valor do testemunho do Espírito nos Apóstolos.
4,7-5,4a Define a natureza do Amor de Deus em nós
5,4b-13 Proclama que a fé em Jesus Filho de Deus é fruto do Espírito que testemunha nos Apóstolos e naqueles que acatam a sua doutrina.
5,14-17 Não é para rezar para aqueles que cometem o pecado que conduz à morte: o pecado da apostasia.
5,18-21 João nos lembra, mais uma vez a nossa condição, por estarmos em Cristo, e a obrigação de amar o irmão. Temos a vida eterna, não nos deixemos subjugar novamente pelo Diabo mentiroso desde o princípio.


1Jo e Evangelho de João

   A exegese da terminologia da 1Jo se encontra no Evangelho de João, a ponto de ser impossível entender a carta sem estarmos familiarizados com ele. Jo 1,1-18 nos ilustra a Palavra da vida, a Vida, Vida eterna enquanto se manifesta. Jo 3 nos fala do amor de Deus que, para a salvação do mundo, entrega o Filho como vítima de expiação dos pecados. Jo 13 nos fala do amor aos irmãos como condição de estarmos em Cristo. Jo 14 nos fala das condições da perfeita caridade, do Espírito que conduz a toda verdade,da observância dos mandamentos para que em nós o Pai e o Filho possam estabelecer sua morada. Jo 15 nos fala dos mandamentos e, particularmente do amor ao irmão para que permaneçamos em Cristo e, segundo a vontade do Pai, produzamos muitos frutos. Jo 16 nos explicita como o Espírito testemunhará em nós contra o mundo, que Jesus é o Cristo e como, pela fé em Jesus, vencemos o mundo. Jo 19,34 nos explica de que forma João pode falar de Jesus como Messias, porque nele vê o Templo do qual sai a Água da vida que jorra do lado direito do altar do templo. Jo 20 nos descreve de que forma os Apóstolos chegaram à plena compreensão de Jesus.  


Visão teológica de João

    Deus é o Verdadeiro. Nele temos o Pai que, no seu amor, envia o Filho, que também é, com o Pai, o Verdadeiro. Um com o Pai e o Filho temos o Espírito que é a Verdade.
    Segundo a ação trinitária somos chamados a participar da vida do Verdadeiro. Ela acontece quando o Pai envia o Filho que, ao dar a vida pelos seus, nos merece o Espírito.
     É o Espírito que opera em nós a vida do Verdadeiro, nos conduzindo a toda a verdade, realizando em nós a purificação dos pecados e a observância dos mandamentos que permite em nós a plenitude da caridade.
    Os exercícios ascéticos são: 1) em relação à purificação dos pecados, a resposta à ação do Espírito que opera em nós com os seus dons, até nos fazer produzir os frutos próprios da caridade; 2) em relação ao amor aos irmãos, a observância dos mandamentos, que permitem a vida divina em nós; 3º) em relação à fé, a fidelidade à Palavra, aprofundada pelo Espírito, em comunhão com os Apóstolos.
    O Espírito conduziu os Apóstolos
, por primeiro, à compreensão da Palavra da Vida e da natureza da sua obra redentora, da necessidade da purificação diante da santidade de Deus à qual somos chamados, a entender a natureza da vida de amor em nós, segundo o dinamismo da purificação e da prática dos mandamentos que Cristo nos deixou.
    Dessa forma, fica entendido que não há outro caminho para ser de Deus a não ser a fidelidade àquilo que os Apóstolos foram chamados a anunciar, segundo o testemunho com que o Espírito os marcou.
    A vida cristã é uma vida de caridade, fundamentada na fé em Jesus Cristo Filho de Deus. O fiel reconhece na Morte de Jesus o seu princípio e o motivo da sua purificação. Vê na implementação dos mandamentos de Cristo a condição do Amor de Deus nele.


(2) 1Jo  Conteúdo

Pela simples leitura da carta temos o seguinte conteúdo:
1,1-4 João escreve para exortar os fiéis a guardar a sua comunhão de fé  com os Apóstolos para que estejam em comunhão de vida com o Pai e seu Filho Jesus Cristo, a Palavra da Vida, a Vida que se manifestou: “Voltada para o Pai, nos apareceu” (v. 2). Dela, os Apóstolos, nos dão testemunho na condição de quem esteve com Jesus desde o princípio: de tudo o que ouviram, viram com seus olhos (Jo 19,34), contemplaram e suas mãos apalparam (Jo 20,27s).
1,5-2,2 Porque Deus é Luz, devemos andar segundo a verdade. A vida divina então estará em nós. Torna-se necessário a purificação dos pecados para que a Palavra habite em nós (2,15; 5,18). Tudo está fundamentado no amor que Deus revelou ao destinar o Filho como vítima de expiação. Pela purificação alcançamos a caridade com Deus e com os irmãos.
2,3-11 O Verdadeiro está naquele que guarda os mandamentos porque nele o amor é perfeito. O mandamento do amor os resume em si. Juntamente com a purificação, nos torna luz no Senhor.
2,12-14 Síntese das verdades a serem guardadas
            Recebemos o perdão dos pecados no Nome da Palavra da Vida, Aquele que é desde o princípio, o Filho, Deus verdadeiro, Vida eterna (5,20), que nos torna vitoriosos sobre o Maligno. Estamos em comunhão de vida com o Pai e seu Filho; a Palavra que permanece em nós nos torna fortes contra o Maligno.
2,15-17 O mundo é o inimigo que devemos vencer. Nele não está o amor do Pai. Se voltássemos a amá-lo, as concupiscências voltariam a nos subjugar e nós pereceríamos. Somente fazendo a vontade do Pai é que  permanecemos eternamente.
2,18-28 Fundamentados na Verdade a que o Espírito os levou em virtude da pregação dos Apóstolos, os fiéis não devem dar ouvidos aos que negam ser Jesus o Cristo. Os anticristos não falam segundo o Espírito, pelo contrário, revelam ser do mundo que já pecou em não reconhecer em Jesus o Messias (Jo 16,8).
            A fidelidade ao Espírito que, em nós, dá testemunho que Jesus é o Cristo, é mais uma condição de vida eterna, juntamente com a purificação dos pecados e a observância dos mandamentos.
2,29-3,10 João retoma o tema da  purificação dos pecados (1,8-2,2).
Nascemos de Deus que é justo. Nos tornamos filhos, destinados a vê-lo e conhecê-lo como ele é. Por isso temos que nos tornar puros como ele é puro, lembrando, também, que a vítima de expiação era sem pecado.
            O pecado nos escraviza ao demônio. Somos estirpe de Deus e, por isso, não podemos pecar. Quem pratica a justiça é de Deus, quem peca é do demônio.
3,11-24 Por meio de outra retomada, João desenvolve o tema do amor aos irmãos, apresentado em 2, 3-11. A vida de caridade é o termo último da ação de Deus em nós. O fiel se distingue do mundo porque ama o irmão. O Modelo é Cristo que deu a vida pelos irmãos. O fiel é chamado, por sua vez, a dar a vida pelos irmãos. A partir da nossa sensibilidade com o necessitado, devemos amar até o nosso coração não mais nos acusar de omissão. Isto ocorre quando guardamos os mandamentos.
            Vida eterna em nós é crer em Jesus Filho de Deus e observar os seus mandamentos. Nós o sabemos pelo Espírito que Deus nos deu (Jo 14,15-17).
4,1-6 Em virtude da unção do Espírito que leva a crer que Jesus é o Cristo, os fiéis já sabem quem é de Deus e  quem é do mundo. Os Apóstolos têm a mais profunda convicção de estar testemunhando a verdade.

4,7-5,4a A caridade
4,7-13  Chamados a ver e conhecer a Deus devemos cultivar a vida divina em nós, amando-nos uns aos outros (o que implica andar na Luz, guardando a Palavra, 2,10.5). Devemos aplicar em nós o dinamismo da vida em Deus, que se revelou enviando o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Pelo Espírito que vive em nós, reconhecemos, então “que permanecemos nele e ele em nós” (4,13).
4,14-16  Pelo Espírito chegamos a contemplar e a testemunhar que “o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo”. Quem na base do testemunho dos Apóstolos, confessa que Jesus é o Filho de Deus, “Deus permanece nele e ele em Deus” (4,15).
4,17-18 A perfeição do amor é indicada pela falta de temor.
4, 19-21 O amor ao irmão é a verdadeira condição para estarmos em Deus.
5,1 Em síntese, nisto consiste o amor de Deus: crer que Jesus é o Cristo (4,15). Isto levará necessariamente a amar “o que nasceu de Deus”.
5,2 A natureza do amor de Deus constitui-se em confessar que Jesus é o Filho de Deus (4,15) e amar o irmão (4,21).
5,3 O amor ao irmão, reflexo do amor de Deus em nós, se realiza pela observância dos mandamentos (2,3) que, longe de ser pesados,
5,4a ... nos tornam vitoriosos sobre o mundo: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida” (3,14).
5,4b-13 A fé
5,4b Por tudo aquilo que praticamos, fé em Jesus Cristo e observância aos mandamentos, pelo fato que nos permite continuar a ser estirpe de Deus, vencemos o mundo “todo sob o poder do Maligno” (5,19).
5,5 O mundo só pode ser vencido pela fé em Jesus, reconhecido na sua condição divina.
5,6 Pela sua Morte de Cruz realizou a nossa redenção. João viu com seus olhos e, mais tarde, movido pelo Espírito da Verdade, entendeu que a Glória de Iahweh fazia jorrar a água da Vida do seu Templo. Esse é o testemunho que Deus deu do seu Filho e que os Apóstolos experimentaram diante do ressuscitado que apalparam com suas mãos e contemplaram como Senhor e Deus.
5,10 Aquele que, em comunhão de fé com os Apóstolos, crê que Jesus é o Filho de Deus, tem em si o testemunho que o Espírito dá.
5,11 O Filho é Vida eterna: “Deus o enviou ao mundo para que vivamos por ele” (4,9).
5,12 Numa clara alusão à abertura da carta, onde diz que a Palavra da Vida, a Vida, é Vida eterna, João volta a afirmar que “quem tem o Filho tem a vida”.
5,13 De posse da fé no Filho de Deus, os fiéis devem levar à perfeição a vida eterna que está neles atendendo ao amor que o Apóstolo tem por eles.

5,14-21 Síntese final
5,14 O sinal da perfeita caridade é a confiança de sermos atendidos sempre.
5,16 Não rezem pelos que negam ser Jesus o Cristo. É um pecado que não será perdoado (2Jo 10).
5,18 O Gerado é capaz de nos proteger do Maligno pelos mandamentos que guardamos (2,13.14b; 5,3-4).
5,20 O Filho, pelo Espírito que nos mereceu com a sua imolação de cruz, nos levou à plena comunhão de vida com o Deus verdadeiro.
5,21 Precavemo-nos dos ídolos (1Tss 1,9).


 (3)1Jo  Exórdio (1,1-4)
           
            A carta se abre com a declaração de João de ser ele, juntamente com os outros Apóstolos, testemunha da condição divina de Jesus. Jesus é o Cristo de Deus, o Filho, em Deus voltado para o Pai, a Palavra criadora, a Vida, que ao se manifestar, devido a sua condição divina, tornou-se Vida eterna para nós.
            Os Apóstolos podem dar testemunho em virtude do Espírito que o Filho de Deus lhes comunicou.
            A comunhão de fé com eles é condição de comunhão de vida com o Pai e o Filho. É nessa condição que João nos exorta a não avançar, e sim, a permanecer na doutrina de Cristo e dessa forma possuir o Pai e o Filho (2Jo 9).
            Os fiéis levarão à plena alegria os Apóstolos se puserem em prática o que eles anunciam. De fato, é sob a lida do Espírito Santo que dão testemunho de tudo o que ouviram, viram com seus próprios olhos, contemplaram e suas mãos apalparam. Trata-se da Palavra da Vida, d’Aquele que não podiam compreender, porque o Espírito não os tinha ainda conduzido a toda verdade, d’Aquele que não podiam seguir, porque neles ainda não tinha amadurecido a caridade, em favor de quem, agora, podem testemunhar porque chegaram a reconhecer nele o seu “Senhor e Deus”, a Palavra que desde sempre existe em Deus e que é Deus, pela qual tudo foi criado, que é Vida, Luz para os homens. Os que a acolhem tornam-se filhos de Deus, sua estirpe. Por Jesus Cristo nos vieram a graça e a verdade (Jo 1,1-18).
            As palavras do exôrdio querem ser uma apresentação do conteúdo da doutrina da fé dos Apóstolos, daquilo que chegaram a compreender de Jesus Cristo, o Filho que veio e que, pelo Espírito que nos mereceu pela sua Morte de Cruz, nos deu a compreensão para chegarmos a conhecer o Verdadeiro (5,20). Nele estamos quando vivemos a caridade, porque, então, estamos na Luz. Olhando para o nosso modelo que é Jesus, que nos ensinou a dar a vida pelos irmãos, para termos em nós a vida no seu mais alto grau, reconhecendo-nos pecadores, nos purificamos no seu Sangue. Então estamos em Jesus Cristo, Deus Verdadeiro, Vida eterna.
            Trata-se de verdades que os Apóstolos chegaram a contemplar e que consideram, quando abraçadas segundo a moção do Espírito que nos ungiu, e, pelo mesmo Espírito vividas, condição de vencer o mundo. Crer que Jesus é o Filho de Deus e ter em nós o amor aos irmãos, pela caridade que conquistamos pela purificação e pela observância dos mandamentos, é vida eterna. Enquanto vivemos em Cristo, fortes na sua palavra que permanece em nós, somos vitoriosos contra o Maligno.
            Nutrimos a fé quando aprofundamos a compreensão de Deus que é a Bondade que age no amor, que se revela na sua misericórdia. O Resplendor dessa Glória é o Filho que se manifestou e realizou a salvação. O Espírito que é a Verdade, merecido por Jesus Cristo, é o vivificador. Por Ele, quando praticamos os mandamentos do Pai que são manifestados pelos mandamentos do Filho, e desenvolvemos os dons do Espírito, produzimos muitos frutos e o Pai é glorificado. Pelo Espírito da Verdade, estamos, então, em Cristo o Verdadeiro e, por ele, estamos no Pai.
            João desenvolve o seu pensamento à luz da visão do Pai que age pelo Filho. O ilumina o Espírito merecido pelo Filho.

1,1      O que era desde o princípio.  João está se referindo à condição divina de Jesus que chegou a entender pela ação do Espírito que Jesus prometera (Jo 14). O pronome relativo neutro inicial,  da mesma forma que os outros pronomes relativos neutros que se seguem, estão relacionados à Palavra da Vida. João está se referindo à condição divina que a Vida que se manifestou possui desde sempre.
1,1  ... o que ouvimos É a primeira especificação de tudo o que João pode testemunhar. Trata-se de tudo aquilo que Jesus ensinou e que os Apóstolos chegaram a compreender pelo Espírito que Cristo mereceu com a sua imolação.
1,1  ... o que vimos com nossos olhos É a segunda especificação. Trata-se de Jesus ressuscitado de quem os Apóstolos são testemunhas.
1,1  ... o que contemplamos e nossas mãos apalparam Clara referência à visão de Jesus ressuscitado que levou os Apóstolos à fé no seu “Senhor e Deus”.
1,1  ... da Palavra da Vida. Iluminado pelo Espírito, João detectou no quadro da criação apresentado em linguagem antropomórfica de Gn 1,3, a figura de Jesus na sua condição divina. Jo 1,1 diz “No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus... Ela era a Vida”.
            Comentário. 1Jo 1,1 descreve a fé à qual os Apóstolos chegaram pela ação divina do Espírito que os levou a entender a condição divina de Jesus.
1,2      E a Vida se manifestou Trata-se da “Palavra que estava com Deus, desde o princípio. Ela era a Vida” que realizou a sua teofania entre nós. Jo 1,1 relaciona esse termo à Palavra que desde sempre existiu, que “estava com Deus, que “era Deus”. Palavra criadora, “Ela era a Vida e a Vida era a Luz dos homens” (Jo 1,4s).1,2      E nós vimos Os Apóstolos chegaram a entendê-la claramente.
1,2  ... e testemunhamos O Espírito dá testemunho neles de que Jesus é a Vida.
1,2  ... e a vós anunciamos Segundo a certeza à qual chegaram pelo Espírito da Verdade, enviado por Jesus, constituído Senhor, no-la anunciam.
1,2  ... a Vida eterna Outra maneira de descrever a condição divina de Jesus. O termo “eterna” ilustra o que João disse no início da Palavra da vida: “o que era desde o princípio”.
1,2      Que estava com o Pai É a visão que João tem de Jesus, enquanto contemplado em Deus.
1,2  ... e a nós se manifestou  Trata-se da forma pela qual o “Unigênito Deus” se revelou aos homens a começar pelos Apóstolos
            Comentário. 1Jo 1,2 descreve a natureza divina de Jesus, Palavra da Vida: “Vida eterna voltada para o Pai”.
1,3      O que vimos e ouvimos Trata-se da doutrina que os Apóstolos adquiriram pela ação do Espírito, acerca da “Vida eterna voltada para o Pai”.
1,3 ... anunciamos a vós, também  É a função específica dos Apóstolos escolhidos para serem testemunhas. A doutrina que receberam de Cristo Jesus, no-la transmitem segundo a condição na qual foram constituídos (4,6). Ela é fruto da ação do “Espírito que é a verdade” que, prometido por Jesus, eles receberam após sua ressurreição (Jo 20,22; Lc 24, 44-49).
1,3      Para que vós também estejais conosco em comunhão com Deus Os Apóstolos agem movidos pela obrigação que deriva da sua missão. Visam a participação dos fiéis à vida de Deus. Ela depende da profissão de fé em Jesus que se revelou o Cristo, Filho de Deus. O reconhecimento da condição divina de Jesus, a observância da sua mensagem, que os Apóstolos dele receberam e fielmente nos transmitiram (Hb 2,3-4), nos põem em condições de plena comunhão de vida com Deus, pela ação do mesmo Espírito que constituiu os Apóstolos testemunhas do Verdadeiro.
1,3      E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo É a vida que Deus, nos seu desígnio, por livre determinação de sua vontade, nos oferece, tendo-nos predestinados a sermos seus filhos adotivos em Jesus Cristo (Ef 1,6), à qual chama os homens pelo testemunho dos Apóstolos.
            Comentário. 1Jo 1,3 especifica qual é a função dos Apóstolos: anunciar o Mistério de Jesus para que os fiéis participem com eles da vida de Deus.
1,4      E estas coisas nós escrevemos para que a nossa alegria seja completa João, movido por zelo pastoral de Apóstolo, quer que aqueles, que pela sua pregação gerou à vida, continuem vivendo a perfeição da caridade. Ele sabe que, pelo carisma que lhe é próprio, na condição de Apóstolo, pode colher algum fruto, enquanto se une às assembléias dos ouvintes na partilha da sua fé. À semelhança de Paulo e do autor do Apocalipse, quer que os fiéis promovam continuamente a perfeição da caridade  para que permaneçam em comunhão de vida com o Pai e o Filho; uma comunhão que será alcançada por eles se viverem em tudo a mensagem que Jesus Cristo deixou.
            A esse respeito, Paulo expressa os seus sentimentos em Fl 2,1: “Dêem testemunho em Cristo, me consolem com a manifestação da sua caridade, aquela pela qual o Espírito os põe em comunhão de vida uns com os outros, tenham em meu favor sentimentos de comiseração. Levem a minha alegria à sua plenitude vivendo, em tudo, a mensagem do Filho, Jesus Cristo, o Deus verdadeiro”! No caso de Paulo, a expectativa estava limitada a uma superação de rivalidades, para que fosse restabelecida a unidade entre fiéis e os seus presbíteros e diáconos. No caso de João a expectativa era muito mais angustiante, diante do perigo da queda do primeiro amor e da falta do seguimento de Jesus pela observância dos seus mandamentos e diante do perigo das falsas doutrinas de falsos profetas que negavam ser Jesus o Cristo.
          Comentário
            O exôrdio apresenta o processo pelo qual os Apóstolos chegaram à fé na divindade de Jesus. Na condição de testemunhas, enviadas para anunciar a Boa Nova da salvação, nos exortam a viver a mensagem de Jesus Cristo.
            A forma exortativa: “Filhinhos isto vos escrevo... “ estará a indicar, ao longo da carta, a doutrina que os fiéis devem implementar, enquanto relembrará a preocupação pastoral do Apóstolo à qual os fiéis devem corresponder.
            Desde já podemos notar que João, juntamente com os outros Apóstolos, age sob a ação do Espírito. Por ele, os Apóstolos chegaram a reconhecer em Jesus a condição divina e se tornaram anunciadores daquilo que testemunharam. Convencidos da sua função podem declarar que estarão em comunhão de vida com Deus somente aqueles que estarão em comunhão de fé como eles. Enfim, proclamam que a implementação da doutrina que eles receberam de Jesus e nos transmitem é condição de vida eterna.
            A abertura da carta está relacionada ao Evangelho de João nos seguintes pontos: 1º) “O que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam da Palavra da vida”. Essas palavras lembram a visão do Senhor ressuscitado e o prólogo de Jo. 2º) “que estava voltada para o Pai e nos apareceu”. São palavras relacionadas ao prólogo de Jo (1,18).
            Por esses elementos é possível entender porque João se expressa com tanta convicção acerca do valor do seu testemunho sobre Jesus Filho de Deus. Ele, juntamente com os outros Apóstolos, passaram de uma condição de incompreensão, a ponto de Jesus afirmar que então não podiam segui-lo (Jo 13,33), à posse de toda a verdade, pela ação do Espírito.
            A sua segurança é tão grande que podem afirmar que a nossa comunhão de fé com eles é condição de comunhão nossa com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo.
            A carta é fruto do mais profundo testemunho em virtude da unção que o Espírito realizou neles para se tornarem anunciadores da obra da salvação que Deus realizou pelo Filho que enviou ao mundo como vítima de expiação dos nossos pecados.
            Os fiéis, pela fé que abraçaram, ao ouvirem as palavras dos Apóstolos, estão em condições de manter a sua adesão ao Apostolo e testemunhar (5,1): “Deus nos deu a vida eterna e esta vida está no Filho” (5,11).
            1Jo é uma proclamação de fé do Apóstolo. O leitor e os ouvintes são chamados a ele se unir para que levem à plenitude a sua alegria ao ver que o seu trabalho de pastor não foi perdido (2Jo 9).
            A condição de anunciadores da mensagem de Jesus em virtude do testemunho do qual são capazes, porque o Espírito os conduziu a toda verdade, torna toda a sua doutrina fruto do Espírito (3,24; 4,13). Os Apóstolos podem proclamar que tem a vida eterna quem crê no Filho (5,12) e afirmar com a mesma convicção que alcançam a vida eterna somente os que se purificam no sangue de Cristo e observam os seus mandamentos.

27 de Dezembro Tempo do Natal
            Reflexão
             Pelo tom do exórdio, notamos que a carta de João visa apresentar: 1º) a Pessoa de Jesus na sua condição divina: ele é Vida eterna. 2º) os fundamentos de credibilidade da pregação dos Apóstolos: eles o ouviram, o viram, o contemplaram e até o apalparam, até chegar a compreendê-lo na sua condição divina pela inspiração do Espírito Santo. 3º) A comunhão de vida que se estabelece com Pai quando cremos no Filho; 4º) a necessidade dos fiéis de estar em comunhão de fé com os Apóstolos para estar em comunhão de vida com o Pai e o Filho.
           A premissa serve para estabelecer a necessidade de acolher a “mensagem do Senhor” que sugere as seguintes obrigações: 1ª) viver a purificação dos pecados; 2ª) observar os mandamentos de Cristo para ter em si o amor de Deus; 3ª) ater-se ao que sugere o Espírito pelo ensinamento dos Apóstolos.
            Os pontos doutrinais apresentados pelo exórdio e as obrigações contidas na mensagem de Jesus, desenvolvidos, acabam se constituindo em um manual de vida cristã. 

 (4) 1Jo A mensagem de Jesus (1,5-7)

1,5 Esta é mensagem que ouvimos dele Começa a explicitação da doutrina que os Apóstolos ouviram de Jesus e da qual dão testemunho por ter chegado à sua plena compreensão pela ação do Espírito Santo (Jo 14,26).1,5 ... e vos anunciamos Na condição de testemunhas constituídas por Deus,  no-la transmitem (Hb 2,3s).
1,5  Deus é Luz e nele não há treva alguma É a doutrina de Jesus resumida num axioma. A princípio ela implica o seguinte compromisso moral: aquele que abraçou a fé em Cristo e se tornou luz no Senhor, não pode mais pecar (5,18).
1,6 Se dissermos que estamos em comunhão com Ele e andamos nas trevas, mentimos. Há uma incompatibilidade total entre vida divina e o pecado.
1,6 ... e não praticamos a verdade Pecar é renegar o Verdadeiro.
1,7 É quando caminhamos na luz como ele está na luz João explicita essa condição, que aqui propõe em forma temática, seja quando fala da purificação dos pecados, como quando fala da observância dos mandamentos e da adesão à doutrina à qual nos levou o Espírito Santo, todas condição de vida eterna em nós.
1,7 ... que estamos em comunhão uns com os outros É aquele que põe em prática as palavras de Cristo Jesus que tem em si a vida divina, condição para estar em comunhão com Deus.
1,7 ... e o Sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado Saímos das trevas do pecado em virtude da Morte de Cristo. Por meio dele nos tornamos luz. Estamos em condição de proceder numa contínua purificação até chegarmos à condição gloriosa do Senhor ressuscitado.
Comentário
Já estão definidos o que é vida divina em nós e qual é o caminho da sua realização: é Luz divina em nós, que permite a plena comunhão com Deus. Isso acontece pelo dinamismo da purificação dos pecados, a observância dos mandamentos e a fé em Jesus Cristo Filho de Deus, em comunhão com os Apóstolos. A sua realidade, como um todo, se constitui no amor ao irmão, reflexo da vida de Deus, que é  amor, em nós. 

 (5)1Jo A purificação dos pecados (1,8-2,2): “Meus filhinhos, isto vos escrevo para que não pequeis” (2,1) 
1,8 “Se dissermos que não temos pecado”. É uma advertência que encontramos, também, em 2Pe 1,9, momento em que Pedro, também, exorta a viver a purificação dos pecados.
1,8 “Enganamo-nos a nós mesmos”. É verdade que sepultados na Morte com Cristo, ressurgimos para uma vida nova (Rm 6,4). Ela contudo deve desenvolver-se até se tornar uma vida gloriosa como a é a do Senhor glorificado. Isto acontece “juntando à fé a virtude.. “ (2Pd 1,3 ss).
1,8 “e a Verdade não está em nós”. Porque em nós não está se processando a purificação pelo despojamento do homem velho para nos revestirmos do homem novo. Permanecendo a treva do pecado, não vemos nem conhecemos  a Deus (3,6).
1,9 “Se confessarmos nossos pecados”. O reconhecimento da nossa condição pecadora é fruto da contemplação da grandiosidade do Desígnio que Deus realizou em Cristo que tornou vítima de expiação, para que crescendo segundo os dons do Espírito produzamos frutos de vida eterna. Trata-se  de reconhecer a nossa condição pecadora que somente Deus pode restaurar e reconhecer na ação trinitária da nossa redenção a sua única condição de realização.
1,9 “Ele é fiel e justo”. Diante do homem que se reconhece pecador, aquele que “enviou seu Filho como  Salvador do mundo (4,14), fiel ao seu juramento, nos justifica.
1,9 “para perdoar os nossos pecados e purificar de toda injustiça”. É vontade de Deus nos reconciliar com ele e nos santificar no Sangue de Jesus, seu Filho (Ef 1,13s).
1,10 “Se dissermos que não pecamos fazemo-lo mentiroso”. Negar a necessidade de nos purificarmos dos pecados significa desconhecer tudo o que a Revelação diz sobre o homem.
1,10 “e a sua Palavra não está em nós”. Nesse caso, certamente, não estamos em comunhão com a Palavra, o Filho de Deus que veio “e nos deu a inteligência para conhecermos o Verdadeiro” (5,20). Uma vez que não estamos no seu Filho “Deus verdadeiro e Vida eterna”, não estamos em comunhão de vida com o Pai.
2,1 “Meus filhinhos, isto vos escrevo para que não pequeis”. É o tema da perícope, posto no seu centro.
2,1 “Mas, se alguém pecar”. Trata-se do caso de omissão na prática da purificação dos pecados.
2,1 “temos como advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, o justo”. Grande síntese doutrinal! Aquele que nos justificou pela Redenção, sentou-se à direita da Majestade, na condição de Filho (Hb 1,3) e intercede por nós, na condição de Sumo Sacerdote (6,20).
2,2 “Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados”. É o Filho que “ao entrar no mundo diz ao Pai: ‘Não te foram aceitos os sacrifícios e os holocaustos –está escrito no Livro- eis que venho, ó Pai, para fazer a tua vontade’ (Hb 10,5).
2,2 “E não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo”. A Redenção é o Gratuito divino oferecido a todos indistintamente porque Deus na sua sabedoria “encerrou todos na desobediência para a todos fazer misericórdia (Rm 11,32).
            Comentário
            João conclui a sua argumentação com a visão central da fé cristã: o Sumo Sacerdote que entrou no céu com o seu Sangue e intercede por nós. Essa visão está diante de uma outra visão, a de Deus na sua condição de Luz que nos chama a participar. A purificação dos pecados, em relação à caridade que deve viver em nós, é um dos aspectos. Devem-se juntar a ela a observância dos mandamentos, em vista da perfeita caridade, o ódio ao mundo para não recairmos sob o jugo do Maligno e a fidelidade à pregação apostólica em vista de uma fé perfeita.

28 de Dezembro Tempo do Natal
            Reflexão (1Jo 1,5-2,2)
João inicia a exposição da mensagem de Jesus com um princípio geral: ”Deus é luz”. O fiel tem o compromisso de andar na luz. Para não recair nas obras das trevas deve viver “juntando à fé a virtude, à virtude o autodomínio, ao autodomínio a constância, à constância a piedade, à piedade o amor fraterno, ao amor fraterno a caridade” (2Pd 1,5-7). Esse processo é chamado pela Igreja apostólica de purificação dos pecados. Quem o realiza é Jesus Cristo. Nós devemos, todavia, nos purificar no seu sangue. Nos motiva o amor que Jesus mostrou ter para conosco, os benefícios da nossa reconciliação com Deus, os frutos do Espírito que brotam pela prática dos seus dons, a constatação da vida de Jesus Cristo em nós, enquanto nos associamos à sua Paixão, perseverantes na tribulação, a caridade que o amor fraterno promove em nós., O nosso empenho na prática das virtudes exigidas pelo exercício ascético da purificação dos pecados, provoca a ação da “Testemunha fiel”, do Justo que se santificou por nós (Jo 17,19).
            Caso o fiel falhe nos seu compromisso de não voltar ao pecado, sempre pode confiar na compreensão de Jesus Cristo que continuamente media em nosso favor diante do Pai, uma vez que entrou no santuário do céu com o seu sangue e intercede por nós (Hb 9,24). O próprio Jesus lembra nas cartas às sete igrejas da Ásia (Ap 2-3) que devemos nos converter e que nos repreende porque nos ama. É fundamental que o fiel viva a perfeição da caridade para que seja reconhecido pelo Senhor das igrejas diante de seu Pai (3,5).

(6)1Jo A observância dos mandamentos de Cristo, condição de plena comunhão com Deus (2,3-11) “Vos escrevo um novo mandamento” (2,8)
 2,3 E sabemos que o conhecemos por isto: se guardamos os seus mandamentos. O conhecimento é dinâmico. Depende da observância dos mandamentos.
2,4 Aquele que diz: “Eu o conheço”, mas não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e a Verdade não está nele. Faltando a observância dos mandamentos, não estamos no Verdadeiro porque não permanecemos no Filho. Vivemos servindo ao pecado pela prática de tudo o que se opõe à Verdade.
2,5 Mas o que guarda a sua palavra, nesse, verdadeiramente, o amor de Deus está realizado. É a vivência dos mandamentos de Cristo que origina a vida de Deus em nós. A metáfora que Jesus utiliza para explicar essa verdade é aquela de fazer sua morada com o Pai naquele que observa os seus mandamentos (Jo 14, 22)
2,6 Aquele que diz que permanece nele, deve também andar como ele andou. Jesus Cristo é o Modelo. Ele observou os mandamentos do Pai (Jo 15, 10).
2,7 O amor ao irmão é um preceito antigo. Faz parte da Palavra que os Apóstolos escutaram desde o início. Ele inclui em si todos os mandamentos que Jesus nos deixou.
2,8 “O novo mandamento”, a todos resume. Ele realiza nos fiéis a Verdade que está em Deus. Por ele, a treva se dissipa e a Luz verdadeira aparece.
2,9 Quem não vive uma vida de amor ao irmão, embora diga estar na luz, de fato, está ainda na treva. Realiza-se em nós o amor aos irmãos quando observamos os mandamentos, com a disposição de dar a vida pelos irmãos.
2,10 Está na Luz aquele que ama o seu irmão. Nele cessa qualquer perigo de tropeçar.
2,11 Quem conduz uma vida de falta de amor ao irmão caminha nas trevas, sem saber por onde anda porque as trevas o cegaram. Aquele que está nas trevas “é um cego, um míope” (2Pd 1,9), que tropeça e não sabe por onde anda.

29 de Dezembro Tempo do Natal
            Reflexão (1Jo 2,3-11)
            O princípio geral da mensagem de Jesus: “Deus é luz” tem a sua aplicação prática na “purificação dos pecados”. Este é o primeiro ponto da doutrina que João está expondo. O segundo ponto: “O que ama o seu irmão permanece na luz” (2,10), quer apresentar qual é o fruto da “purificação dos pecados”. As virtudes praticadas nos levam à caridade, isto é à posse da vida divina. De fato estamos andando como Cristo andou (2,6), porque vivemos em tudo os mandamentos que ele nos deixou. Quando a sua doutrina é por nós praticada, estamos “em comunhão com Deus Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1,3). O segundo ponto é, portanto, uma explicitação do primeiro. Nos diz como devemos desenvolver as virtudes que 2Pd 1,5-7 nos relacionou.
            Jesus apresenta em si o ideal que o cristão é chamado a viver. Os seus mandamentos permitem que se desenvolva em nós o homem novo. Permitem que se realize em nós a vitória sobre o mundo, para que viva em nós o amor de Deus, em toda sabedoria. As etapas do seu desenvolvimento incluem: 1º) o aprofundamento da fé, pela reflexão, sugerida pelas Escrituras, sobre o Mistério que em Cristo se realizou; 2º) o desenvolvimento dos dons do Espírito que, pelo entendimento do Mistério, promove o espírito de conselho, que, por sua vez, nos põe em condição de discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que é agradável e perfeito (Rm 12,2); 3º) a condição de dar testemunho da Palavra e de Jesus Cristo, animados pelo espírito de fortaleza; 4º) a compreensão das verdades reveladas dentro de uma visão global do Desígnio d’ Aquele que, por livre determinação da sua vontade, nos predestinou a sermos seus filhos adotivos em Jesus Cristo; 5º) a celebração comovida de tudo aquilo que Deus realizou em nosso favor, em espírito de piedade; 6º) uma vida em santidade e justiça diante dele, compenetrados por um temor reverencial.
            Cl 1,10-12 nos revela que, pelos dons do Espírito, devidamente desenvolvidos, estamos em condições de produzirmos frutos, sempre pela ação de Jesus, “o Fiel e Justo”, “a Verdadeira Videira” (Jo 15,1). Esses frutos são relacionados em Gl 5, 22s.: “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio”.
            Resumindo:
            Anda na Luz, permanece em Deus, conhece a Deus, tem em si a vida eterna, aquele que se purifica dos pecados e observa os mandamentos de Jesus. Trata-se de um vasto trabalho ascético a que somos chamados, condição da vida divina em nós, princípio da nossa esperança de herdarmos a vida eterna.



(7) 1Jo Devemos radicalizar contra o mundo (2,12-17) 
Como conclusão da reflexão que contemplou Jesus na sua condição divina, princípio de nossa comunhão com o Verdadeiro (5,20), e na sua condição humana, o Filho Jesus Cristo, vítima de expiação dos nossos pecados, João volta a nos exortar para estar à altura da nossa vocação.
            É da seguinte forma que João sintetiza as profundas motivações da vida cristã:

A- Perspectiva cristológica:
1º) Alcançamos a remissão dos pecados em virtude da Morte de Jesus Cristo. 2º) Estamos em comunhão de vida com “Aquele que é desde o princípio”.
3º) Por ele alcançamos a condição definitiva de vencermos o Maligno.

B- Perspectiva Trinitária:
1º) Estamos em comunhão com o Pai.
2º) Estamos em comunhão com “Aquele que é desde o princípio”.
     3º) A Palavra nos torna fortes, vencedores do Maligno (2, 12-14). 
Tudo isso nos motiva a não amar o mundo que nos levaria à perda da nossa comunhão de vida com Deus; nos torna capazes de resistir às concupiscências da carne, da cobiça do ouro, da ambição do poder, enquanto nos torna sempre mais morada do Pai com o Filho, no Espírito.
            Todas essas recomendações são insistentemente sugeridas por João porque ele, juntamente com os outros Apóstolos, tem a responsabilidade de precaver os fiéis de enveredar falsos caminhos.

           Já foi lembrado ao comentar Jo 1,4, que devemos interpretar o insistente refrão “Eu vos escrevo...” com as palavras de Paulo em Fl 2,1-2. Para Paulo, os filipenses continuariam a estar à altura da vida em Cristo, porque viveriam segundo a caridade de Cristo, no cuidado de estar em comunhão com ele, preocupados em consolá-lo levando à plenitude a sua alegria tendo os mesmos sentimentos, todos vivendo o mesmo amor, em pleno acordo, tendo o mesmo pensamento, deixando de lado dissensões e vanglória, na humildade reconhecendo os outros possuidores de valores superiores aos seus. João lembra, em primeiro lugar, a Glória e o Poder que se revelaram na obra da redenção. Em segundo lugar, lembra que, pela fé chegamos a conhecer “Aquele que é”, que era desde o princípio. Em terceiro lugar, lembra a condição de liberdade e dignidade porque libertados da escravidão do Maligno (Rm 8 ). Em quarto lugar lembra a comunhão de vida que gozamos com o Pai e com o Filho. Em quinto lugar, novamente, a condição de liberdade do Maligno porque observando os seus mandamentos e vivendo a purificação, a Palavra da vida permanece em nós. Por tudo isso, João nos exorta a em nada compactuar com o mundo “que passa com as suas concupiscências’ (2,17). “O que faz a vontade de Deus permanece eternamente”. Isso levará o seu coração  à plenitude da alegria.
Exegese
2,12 Os fiéis levarão o Apóstolo à completa alegria se sempre crerem no Nome do Filho de Deus (5,13). Por Ele os pecados foram perdoados (2,2). Trata-se do mistério central da Redenção (Jo 3; Rm 3,21-26; Fl 2, 6-11; Hb 1,3).
2,13 Os fiéis levarão o Apóstolo à completa alegria se permanecerem em comunhão com o Filho, “Aquele que é desde o princípio”; se, por ele, forem sempre vencedores do Mal;
2,14 ... se permanecerem em comunhão de vida com o Pai, pelo amor. Se permanecerem em comunhão de vida com o Filho, “Aquele que é desde o princípio”. Se permanecer neles a Palavra anunciada pelos Apóstolos e que posta em prática,  nos torna vencedores do Mal (2,14c; 5,4b).
2,15 Temos que radicalizar, nada aceitando do que há no mundo para não perdermos a comunhão de vida com Deus. No mundo não está a vida de amor promovida pela purificação dos pecados, pela observância dos mandamentos.
2,16 No mundo temos as concupiscências que subjugam os homens ao Maligno.
2,17 Somente aquele que faz a vontade do Pai é que permanece para sempre, porque nele permanece a vida do Verdadeiro (5,20). Em Rm 12,2 temos um paralelo ilustrativo: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente (purificação dos pecados), a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito”.


(8) 1Jo O testemunho do Espírito (2,18-28) “Filhinhos, permanecei nele” (2,28).                                  
Os anticristos que negam ser Jesus o Cristo é uma questão acrescentada à apresentação das obrigações deduzidas da mensagem de Jesus, às quais os fiéis devem ater-se para estar em comunhão de fé com os Apóstolos e, com isso, em comunhão de vida com o Pai e o Filho.
É o que nos permite aprofundar a ênfase com que João apresenta a importância da comunhão de fé dos fiéis com aqueles que foram constituídos testemunhas da Palavra da Vida para anunciá-la afirmando ser Jesus o Cristo o Filho de Deus.
A questão força o Apóstolo a argumentar em profundidade sobre aquilo que afirmara no exórdio. Por que, então, os fiéis não devem escutar esses homens que se revelam ser do mundo e não  membros da Igreja? É porque os fiéis devem lembrar que quando abraçaram a fé o fizeram na base da ação do mesmo Espírito que movia os Apóstolos a anunciar que Jesus era o Cristo, o Filho de Deus, vítima de expiação dos nossos pecados. Em virtude da unção que então receberam e que os levou a toda ciência, devem continuar a crer no que abraçaram desde o princípio. Não há mais necessidade que outros os ensinem. Os Apóstolos são o divisor de águas entre espírito e espírito. Por eles é possível “reconhecer o espírito da verdade e o espírito do erro” (4,6): “Quem conhece a Deus nos ouve, quem não é de Deus não nos ouve” (ibid.).
Paráfrase.  Para permanecer em Jesus Cristo e no Pai, além de estar em comunhão uns com os outros pela purificação no sangue dele e observando os seus mandamentos, porque somente então amamos os irmãos e realmente estamos em comunhão com eles, devemos nos precaver daqueles que negam  que Jesus é o Cristo. Eles são os anticristos dos últimos tempos que devemos rebater com o testemunho do Espírito que está em nós desde o momento que abraçamos a fé em Jesus Cristo. Tendo recebido a sua unção, possuímos a inteligência para o conhecimento do Verdadeiro (5,20) e possuímos toda a ciência da Verdade, “porque o Espírito é a Verdade” (5,6b). Se abraçamos a mentira que deles o mundo acolheu, estaremos longe de Cristo quando da sua vinda. Uma vez que a unção do Espírito chegou aos fiéis pela pregação dos Apóstolos, somente aquele que está em comunhão com eles tem o Espírito, conhece a Verdade e vive em comunhão com Jesus Cristo e o Pai.
           
Exegese
2,18 João abre esse seu ensinamento em nome de Cristo Jesus com o termo “filhinhos”, enquanto se dirige a quem gerou à fé e quer ver perseverar nela.
2,18 Utiliza a linguagem apocalíptica, falando de “ultima hora” e vinda do “anticristo”, para sinalizar a condição definitiva que a opção de cada fiel implica diante dos anticristos. Uma vez que o Filho de Deus veio na carne e realizou a nossa redenção, não haverá outra chance de salvação. Quem tiver permanecido em comunhão com ele,  atendo-se à doutrina dos Apóstolos, pode ficar confiante que não será envergonhado no dia da Vinda do Senhor (v.28).
2,19 Os que negam ser Jesus o Cristo, somente podiam ser dos que chegaram a abraçar a doutrina pregada pelos Apóstolos, mas que, ao tomarem outros rumos mostraram não serem, de fato, “dos nossos” (2,19), do contrário, teriam permanecido conosco.
2,20 Os fiéis podem distinguir a cada um em virtude da unção do Santo, pela compreensão que receberam do Mistério.
2,21 Sabem qual é a verdade e que toda falsidade não procede da verdade, do Espírito do Verdadeiro (5,6). Não é necessário que voltem a receber a instrução dos Apóstolos.

31 de Dezembro Tempo do Natal
            Reflexão (Jo 2,18-21)
            No exôrdio, João falou do testemunho dos Apóstolos e declarou que os fiéis devem estar em comunhão de fé com eles para estarem em comunhão de vida com o Pai e o Filho. Pos essa perícope explicita a origem do testemunho. Os Apóstolos falaram movidos pelo Espírito. As suas palavras suscitaram o testemunho naqueles que deram a sua adesão de fé, reconhecendo em Jesus o Filho, a Palavra da Vida, a Vida que se manifestou, Vida eterna. Os fiéis têm que se ater a esse testemunho para viver em toda ciência. Desconhecerão, então, os que negam ser Jesus o Cristo.
            Pela argumentação, resulta que os Apóstolos são o divisor de águas entre verdade e mentira. Quem não se atém à verdade testemunhada pelos Apóstolos se exclui da comunhão de fé com a Igreja, renega a verdade. Caso chegue a negar que Jesus é o Cristo, o Redentor, o Filho que o Pai enviou nega a mais alta condição de salvação que Deus oferece. Não haverá outra condição de salvação porque esta é a última: “Agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,2).
            O anticristo é uma figura que representa a condição  de quem nega ser Jesus o Cristo. Ela tem sua origem no meio dos que chegaram a conhecer o Cristo mas não permaneceram fiéis ao testemunho do Espírito, neles suscitado pelas palavras dos Apóstolos. Foram além da doutrina dos Apóstolos, perdendo, dessa forma, as condições de estar em comunhão com o Pai e seu Filho, Jesus Cristo (2Jo 9).  
2,22 “Quem é  falso se não aquele que nega ser Jesus o Cristo”? “Eis o anticristo”. Aqui fala o Apóstolo no ímpeto do espírito da profecia para reafirmar a doutrina fundamental da qual ninguém deve se afastar (2Jo 9). O mesmo ímpeto voltará a se manifestar em 4,6.
2,23 Quem nega o Filho nem o Pai terá. Quem confessa o Filho tem, também, o Pai.
2,24 “O que vós ouvistes desde o início, que em vós permaneça! Se em vós permanece o que ouvistes desde o início, permanecereis no Filho e no Pai”.
2,25 “E esta é a promessa que Ele nos fez: a vida eterna”. Professar a fé em Jesus Cristo é a terceira condição que João lembra para termos em nós a vida eterna. A vida cristã implica: 1º) andar na luz pela prática da purificação dos pecados e da observância dos mandamentos de Cristo; 2º) vencer o mundo, não deixando que as concupiscências nos dominem; 3º) estar em comunhão de fé com os Apóstolos, sem ir além da doutrina que abraçamos movidos pelo Espírito.
2,26 “Isto vos escrevi” Equivale à seguinte expressão: “Se há alguma consolação em Cristo, pela comunhão no Espírito, completai a minha alegria permanecendo firme na doutrina que nós, os Apóstolos, vos transmitimos”. A isto se referia João, em termos gerais, no exôrdio.
2,27 Quanto a vós, a unção  que dele (do Espírito Santo) recebestes, permanece em vós e não tendes necessidade que alguém vos ensine. Da forma que a sua unção vos ensina acerca de tudo, e ela é da verdade e não da mentira, uma vez que assim vos instruiu, permanecei nele.
2,28 “E agora, filhinhos, permanecei nele, para que quando Ele se manifestar, estejamos confiantes e não sejamos envergonhados por ele no dia da sua parusia”.
            Comentário
            As palavras do Apóstolo adquirem uma acentuação peculiar porque a verdade negada pelos anticristos é fundamental para qualquer outra doutrina. Ao lembrar aos fiéis que devem se ater ao impulso do Espírito, os Apóstolos nos revelam que a doutrina que ensinaram é fruto do Espírito. É algo que chegaram a compreender sob a ação d’ Aquele que Jesus prometeu que a eles enviaria para que os levasse a conhecer toda a verdade. São as palavras que eles pronunciaram e que produziram frutos de conversão pela ação do Espírito.

2 de Janeiro Tempo do Natal
            Reflexão
            A Pessoa divina do Espírito Santo marcou a vida dos Apóstolos em virtude da sua vocação. Por ele constataram que podiam interpretar as Escrituras e dar testemunho de Cristo diante dos tribunais. Além disso, presenciaram à sua ação nos ouvintes das suas palavras. Pela fidelidade à sua missão, chegaram até a experimentar a alegria, o mesmo fruto que o Espírito suscitou em Jesus, enquanto vivia a sua Paixão. Dele repletos, experimentaram a sua eficaz energia em todas as boas obras que empreenderam. Pelo Espírito, portanto, João, pode nos instruir com segurança sobre a condição divina de Jesus Cristo e indicar o caminho para seguí-lo e, diante dos anticristos, propor a doutrina dos Apóstolos como condição segura de estar na verdade.
            De fato, é fácil, uma vez captada a doutrina sobre a condição divina de Jesus, deslizar, de forma imperceptível, do campo da fé para o campo da razão, essa segunda acabando de ser considerada como instrumento único da verdade. De fato, a adesão de fé dos Apóstolos, embora parta dos sinais que Deus concede, tem como fundamento único a Pessoa divina. Uma vez que foram dadas as provas suficientes para crer, o objeto da fé é acolhido sem mais que a razão procure a sua explicação. Trata-se de uma verdade que Deus revela e o seu fundamento é a autoridade do Santo e Verdadeiro. Nessa condição, o Cristo crucificado é Poder de Deus e Sabedoria de Deus. É redenção porque, em Jesus, a sua humanidade o tornou vítima sacrifical que, na condição de Filho, oferece ao Pai. Da mesma forma, o Memorial que Jesus institui da sua Morte, torna presente o seu sacrifício, do qual participamos pela comunhão na “sua carne dada para a vida do mundo”. 

 (9) 1Jo Purificação dos pecados, primeira retomada (2,29-3,10) “Filhinhos, que ninguém vos desencaminhe” (3,7).
Em 2,29, João retoma o tema da purificação (1,8-2,2) voltando a rememorar-nos a sua  necessidade para sermos luz em Deus. Contudo, após lembrar que o amor de Deus nos tornou seus filhos, apresenta uma segunda motivação para vivermos a nossa purificação: porque filhos, destinados a vê-lo como ele é devemos “ser puros como ele é puro”. A nossa purificação se inspira sempre na Morte de Cristo que veio para tirar o pecado, o que indica que há uma incompatibilidade total entre a condição de quem nasceu de Deus e o pecado, que é iniqüidade e, portanto, injustiça e perversão.
            Por isso, João exorta a não pecar para não voltarmos à condição inicial, descrita por Gn 3, de reféns da mentira. Lembra também que uma vez que nascemos de Deus, é evidente que não podemos mais compactuar com o pecado porque, segundo a natureza adquirida de estirpe de Deus, não podemos mais pecar. O pecado nos tornaria novamente filhos do diabo (3,10).
            Exegese
2,29 “Pois que sabeis que ele é justo”. O fiel sabe, a princípio, que Deus é o Justo e Santo. Nele não há mancha alguma.
2,29 “reconhecei que todo aquele que pratica a justiça nasce dele”. Estamos diante de um imperativo pelo qual João considera categórica a sua afirmação: somente permanece na condição de estirpe de Deus quem pratica a justiça. Aquele que nasceu de Deus por ter dado a sua adesão de fé à Palavra que se fez carne e que é Luz, vive unido a Deus somente se vive segundo a justificação que, Jesus Cristo, o Filho de Deus, realizou, aceitando ser vítima de expiação pelos nossos pecados. Dessa forma, criou as condições para que desapareçam as obras do demônio. A nossa filiação divina está ligada à nossa permanência em Deus. Quem volta ao pecado deixa de ver a Deus e de permanecer nele: “O Espírito Santo se retira quando sobrevém a injustiça” (Sb 1,5). Nós somos estirpe de Deus (não nascemos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus): uma analogia ousada, que mostra, a riqueza do dom e a sua condição relativa à nossa prática de justiça.
3,1 “Vede que prova de amor nos deu o Pai”. A motivação que João está para expor para que vivamos a justiça pela qual nos justificou no seu Filho, o Justo, que se tornou “vítima de expiação pelos nossos pecados” (2,2), é o máximo da expressão do amor de Deus para conosco.
3,1 “Que sejamos chamados filhos de Deus”. A filiação divina é o Gratuito divino. Nela a criatura humana se torna filha de Deus, adotada no Amado (Ef 1,6). Ela se fundamenta na ‘potência obediencial’ que Deus explora movido pelo amor e misericórdia.
3,1 “E nós o somos”. Sempre, porque o Filho de Deus se tornou vítima de expiação pelos nossos pecados. Nele nós cremos. Por isso nascemos de Deus pela justificação do Justo. A filiação divina que o batismo nos conseguiu, aqui na terra, já é participação da vida divina. Por isso, pela fé, já estamos em condições de ver a Deus, enquanto esperamos vê-lo na visão (Hb 11,1).
3,1 “Eis por que o mundo não nos conhece”. A partir da manifestação da Palavra como Glória de Iahweh, Filho do Homem, se criaram dois mundos: o da carne e o do Espírito. O mundo da carne não tem, de fato, nenhuma comunhão de vida com os que são do Espírito: “tudo o que há no mundo..não vem do Pai” (2,16).
3,1 “Porque não o conheceu”. O mundo não aceita Jesus. O próprio Jesus o condenou a não mais vê-lo (Jo 14,19). Havendo uma incompatibilidade entre o mundo e Jesus é evidente que o mundo odeia os que são de Cristo.
3,2 “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus”. A filiação divina é uma realidade que o fiel nunca deve esquecer, fruto da Misericórdia divina, da imolação do Filho e da comunicação do Espírito. Pela ação trinitária passamos das trevas para a luz, fomos purificados, justificados, divinizados, tornados filhos adotivos no Amado (Ef 1,6), herdeiros do Reino.
3,2 “mas o que nós seremos ainda não se manifestou”. Existe em nós a mesma Glória que Jesus, embora ainda na condição de servo, já possuía e que se manifestaria na carne somente após sua ressurreição. Da mesma forma que a Humanidade de Cristo precisou caminhar, na obediência, até à imolação, para receber do Pai a resposta à sua invocação, mediante o chamado: “Tu és meu Filho eu te constituo Dia”, assim, cada fiel deve esperar o chamado à ressurreição gloriosa para poder entrar na Glória do Céu. Patenteia-se, nesta reflexão, a importância da contínua santificação para superar toda e cada tentação com sabedoria, o que nos permite  afastar qualquer titubeação diante da conveniência do que nos é proposto, como o foi para Jesus que não hesitou em endurecer a sua face e subir para Jerusalém, onde aceitou o cálice que o Pai lhe oferecia e deu testemunho da verdade.
3,2 “Sabemos que por ocasião desta manifestação”. O termo manifestação está relacionado à Glória (Jo 2,11). Isto significa que se trata do momento em que a nossa condição de filhos de Deus será revelada, da mesma forma que foi revelada a condição de Cristo pela sua Ressurreição (Rm 1,4).
3,2 “seremos semelhantes a Ele”. A nossa semelhança com Deus, na vida gloriosa do céu, passa pela nossa semelhança com Jesus Cristo, Modelo de todo e cada fiel que chega a herdar a salvação.
3,2 “porque o veremos tal como ele é”. A semelhança não é na linha do corpo mas do espírito que irá refletir tudo o que Deus é. A este ponto entendemos porque o fiel, enquanto vive na terra deve se tornar puro como Deus é puro, e porque a sua purificação deve acontecer no Sangue de Cristo. Somente vivendo em nós a sua imolação é que teremos afastado do nosso espírito qualquer diafragma queimpeça a visão de Deus. Modelo desse comportamento é Cristo que chegou até perdoar aos seus inimigos do alto da Cruz. Resulta que as Bem-Aventuranças foram por ele vividas, como toda a Lei que levou à perfeição tornando-o perfeito como o Pai celeste (Mt 5).
3,3 “Todo o que nele tem esta esperança”. João pensa nos cristãos perfeitamente engajados na sua santificação, quais descritos pelas tipificações do AT, em Hb 11, que na perseverança aguardam a redenção do seu corpo (Rm 8,23-25); nos que, justificados pela fé, promovem a sua glorificação na esperança, certos que a tribulação é a sua condição ideal (Rm 5,1-4).
3,3 “purifica-se a si mesmo”. O dom da filiação divina, uma vez que está sujeito a um desenvolvimento exige uma contínua vigilância para que possa crescer sem quedas ou recaídas, enquanto procura a estatura adulta de Cristo.
3,3 “como também ele é puro”. Uma condição que, como vimos, tem em Cristo Jesus o Modelo.

3,4 “Todo o que comete pecado”. Depois de ter apresentado a meta à qual tende a vida do justificado, são João quer mostrar toda a gravidade do pecado, motivado até pelos erros de falsos doutores que tentam desencaminhar os fiéis com suas doutrinas.
3,4 “comete também a iniqüidade”. Se o pecado é um ato que o homem comete por fraqueza e ignorância e, por isso, Deus é misericordioso com o pecador, ele não deixa de provocar uma condição de iniqüidade porque é praticado na rebeldia e na ambição de ser igual a Deus.
3,4 “porque o pecado é a iniqüidade” De fato é a expressão de uma mente perversa que não respeita os caminhos de Deus e, numa presunção descabida, procura os seus caminhos de realização. A iniqüidade que está por baixo do pecado é amplamente analisada por Paulo em Rm 1,18-32. O pecado afasta a criatura do Criador. A criatura se dirige seguindo vãos arrazoados do seu coração. Prova é a sua idolatria. No homem que vive longe de Deus entra a desestruturação moral, que o leva a praticar toda sorte de injustiça, até tornando-o arrogante diante de Deus.
3,5 Mas sabeis que se manifestou para tirar os pecados João, aqui, apresenta as motivações mais profundas para que vivamos a nossa justificação: houve uma parusia do “Unigênito Deus” que estava voltado para o Pai e que se manifestou (1,2; Jo 1,14) e que o Pai tornou “vítima de expiação pelos nossos pecados” (4,10).
3,5 e nele não há pecado É a condição de Jesus que deve se tornar nossa, de forma definitiva pela purificação no seu sangue (1,7).
3,6 todo aquele que permanece nele não peca Trata-se de uma afirmação que resume tudo o que foi ensinado, até aqui, pela carta. Quem vive a purificação dos pecados, quem observa os mandamentos, quem reconhece que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus tem a vida eterna em si.
3,6 Todo aquele que peca não o viu nem o conheceu Quem não pratica o que Jesus ensinou,  não tem a vida eterna em si.

3 de Janeiro Tempo do Natal
            Reflexão
            O testemunho do Espírito sugere aos Apóstolos que os que são justificados por Deus são, em primeiro lugar luz no Senhor. Uma condição que depende daquela de ser Luz o próprio Deus. O fiel, diante do histórico da sua condição frágil, reconhece que manterá a sua condição de luz no Senhor somente se “se purificar continuamente no Sangue de Cristo”. Encontra a sua motivação ao contemplar a grandiosa obra da sua redenção e ao reconhecer que tem que se purificar porque verá a Deus face a face. Para João, nunca verá e conhecerá a Deus aquele que não se purifica e sustenta a sua afirmação categórica apresentando o que é o pecado, a condição perversa da sua origem e a condição de escravidão a que nos reduz.

3,7 Filhinhos, ninguém vos desencaminhe Mais um alerta do Apóstolo contra falsos doutores.
3,7 Aquele que pratica a justiça é justo É a prática da justiça que nos torna justos.
3,7 como Ele é justo Pela prática da justiça somos semelhantes ao Justo.
3,8 Aquele que pratica o que é pecado é estirpe do diabo O pecado tem sua origem na rebelião que o diabo provoca.
3,8 De fato, desde o princípio o diabo peca A origem do pecado está descrita em Gn 3, mediante a figura da serpente, o diabo, satanás, sinal da rebeldia do homem contra o seu Criador (Ap 12,9).
3,8 Para isso se manifestou o Filho de Deus, para destruir as obras do diabo Ao realizar o Plano de Deus, o Filho quis o fim das conseqüências da rebeldia. A justificação que Cristo Jesus lhe mereceu, “se revela da fé para a fé”, isto é da obediência aos mandamentos de Deus.
3,9 Todo aquele que nasce de Deus, não faz o pecado É inadmissível pensar que o pecado seja compatível na vida daquele que se tornou filho de Deus. O que não exclui a possibilidade de pecar por fragilidade (2,1).
3,9 Porque nele está o sêmen dele. “Não nasceram da carne, mas de Deus”.
3,9 Não pode pecar porque nasceu de Deus Há uma obrigação moral
3,10 Nisto se manifestam os filhos de Deus e os filhos do diabo Existe, portanto, uma distinção clara entre os filhos de Deus e os que não o são. A opção para o pecado torna a pessoa estirpe do diabo. A opção pela justiça o mantém o fiel na condição de estirpe de Deus.
3,10 Todo aquele que não pratica a justiça não vem de Deus É a sentença conclusiva da argumentação iniciada em 2,29.
3,10 Nem aquele que não ama o seu irmão É um gancho para introduzir a retomada sobre o mandamento do amor ao irmão já tratado em 2,3-11. Este, também, é condição para estar em Deus.



 (10) 1Jo A observância dos mandamentos de Cristo, condição de plena comunhão com Deus (2,3-11). Primeira retomada (3,11-24): “Vos escrevo um novo mandamento” (2,8).
Resumo.
 Aquele que não ama o seu irmão não é de Deus, porque as suas obras são más. Tem em si um espírito homicida, como Caim. A vida eterna não permanece nele. Permanece naquele que guarda os mandamentos de Deus. Esta é a forma prática de dar a vida pelos irmãos, como Cristo a deu. Não basta amar por palavras, temos que agir segundo o Espírito. Então saberemos que permanecemos em Deus e o nosso coração de nada nos acusará porque teremos toda confiança nele.
            Análise.
 Como aconteceu quando tratou, pela primeira vez da Vida cristã (1,5-2,11), aqui, também, João une os dois aspectos que a compõem: purificação dos pecados e a observância dos mandamentos. São aspectos da comunhão de vida entre os irmãos, reflexo da própria Caridade Trinitária. Quando falta a observância dos mandamentos, a Vida eterna já não permanece em nós porque estamos praticando obras de morte, como quando nos tornamos insensíveis diante das necessidades materiais dos irmãos. A confiança que teremos em Deus será a prova de que o nosso coração não nos acusa de nada diante dele porque o Espírito do Verdadeiro permanecerá em nós.
3,11 Porque este é o anúncio que escutastes desde o início. É o início da explicação do que foi afirmado na conclusão do tema da purificação dos pecados (3,10).
3,11 que nos amemos uns aos outros É o mandamento de Cristo que sintetiza em si todos os outros mandamentos (Jo 13,34) e que nos torna filhos de Deus.
3,12  Não como Caim. Ele era do mal e matou o seu irmão. João assume esta figura, em oposição a Abel para caracterizar aquele que, por omitir-se naquilo que Deus ordena, acaba afundando no mal.
3,12 E por que o matou? Porque as suas obras eram más. Caim é visto como o protótipo da descendência pecadora. Depois da rebeldia de Adão, se rebela à voz da sua consciência. Dessa forma mostra que é realmente do mal, filho do diabo (3,10).
3,12 enquanto as do seu irmão eram justas. Aqui Abel é assumido, a princípio, como o protótipo do homem justo que age segundo os mandamentos de Deus.
3,13 Não vos admireis, irmãos, se o mundo vos odeia. João está relacionando os fiéis à figura de Abel. O termo “mundo” é extremamente abrangente. Contempla o homem rebelde ao seu Deus, caminhando pelas veredas  sintetizadas nas concupiscências da carne, cupidez de ouro, soberba da vida. Jesus declarou que nunca mais o verá porque o odiou sem motivo, não tem em si o amor de Deus, enquanto procura sua própria glória. Declarou, também que não conhecerá o Espírito Santo, porque é inimigo da verdade (Jo 14;16),
3,14 Sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos A vida está naqueles que vivem segundo as exigências dos mandamentos de Cristo. Portanto, os que permanecem em Deus estão em comunhão de vida com os irmãos.
3,14 Aquele que não ama permanece na morte A condição de morte é ditada pela falta de amor, condição específica da vida em Deus.
3,15 Todo aquele que odeia o seu irmão é um homicida. A figura de Caim inspira esta afirmação. João vê na forma de morte daquele que não ama uma condição moral que prejudica o irmão, da mesma forma que o mundo odiou a Jesus (Jo 15,25). Tudo começa quando o homem não permite que a sua palavra penetrasse nele (Jo 5, 46).
3,15 E sabeis que todo homicida já não tem em si a vida eterna Trata-se de uma advertência para indicar qual é o fim daquele que não quer observar os mandamentos de Cristo. Na argumentação que João está expondo, existe um claro paralelismo com a controvérsia de Jesus com os fariseus no Evangelho de João.
3,16 Nisto conhecemos o amor: ele deu sua vida por nós Jesus se torna o modelo do verdadeiro amor (Jo 15, ).
3,16 E nós também devemos dar nossa vida pelos irmãos É a condição da verdadeira realização do amor, que promove em nós os ideais de Cristo Jesus.
3,17 Se alguém, possuindo os bens deste mundo, vê seu irmão na necessidade e lhe fecha as entranhas, como permaneceria nele o amor de Deus? Trata-se de uma caracterização. Quando o fiel nem disso é capaz, de partilhar seus bens com o necessitado, não pode pensar de ter em si o amor de Deus. Contudo, o amor ao irmão não se limita a um gesto de misericórdia ocasional, implica a observância dos mandamentos de Deus (Jo 15,10)
3,18 Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade É aquilo que João tinha dito desde o começo, quando abordou pela primeira vez o preceito do amor (2,4-5).
3,19 Nisto saberemos que somos da verdade, e diante dele tranqüilizaremos o nosso coração... Quem vive a verdadeira caridade, amando o irmão “andando como ele andou” (2,6) está em plena comunhão de vida com Deus.
3,20 ... se o nosso coração vier a nos condenar. É a condição de quem ainda não vive plenamente o mandamento que Jesus nos deixou.
3,20 ... porque Deus é maior que o nosso coração... O nosso coração estará tranqüilo quando estiver vivendo como Deus ama.
3,20 ... e conhece todas as coisas. Ele é o único critério da vida perfeita.
3,21 Amados É o mesmo termo de “filhinhos” e expressa o desejo que os fiéis vivam à altura da sua vocação, para se tornar merecedores da vida eterna, vivendo segundo a mensagem que Jesus nos deixou (1,4-5).
3,21 Se o nosso coração não nos condena, temos confiança diante de Deus Quando tivermos visto desaparecer toda intranqüilidade do nosso coração por estarmos vivendo a perfeita caridade, teremos confiança em Deus.

4 de Janeiro Tempo do Natal
            Reflexão
            Estamos diante de uma perícope da qual devemos notar o estilo literário. Não podemos lê-la a ela aplicando a nossa lógica. Segundo a nossa lógica, ela constitui-se em frases interligadas pela simples relação ao mesmo tema ou por palavras gancho. Não vemos uma lógica sintática segundo a qual as frases estariam ligadas por uma razão argumentativa. De fato, estamos diante de uma argumentação na qual os pronunciamentos são sínteses de conceitos já desenvolvidos e que agora estão ligados entre si de forma alusiva. 3,11, por si já aponta para a natureza da argumentação, enquanto lembra que os leitores estão lendo algo que já sabem. A figura de Caim, portanto, é uma citação alusiva a uma figura paradigmática. Ela é clássica para ilustrar o ódio em  contraste com o amor. Para acentuar a condição de iniqüidade na figura de Caim, João a ele atribui todo o que é obra má (coisa que nem a Escritura a ele atribui) (3,12). Essa condição que priva aquele que não ama da vida divina e pode ser comparado a Caim, torna o sujeito membro do mundo. A alusão, que parece sem sentido, de fato, quer completar a visão de condição iníqua em que se encontra quem não vive segundo os mandamentos de Cristo (3,13). A condição privilegiada em que se encontra aquele que ama o irmão, colocada de forma antagônica em relação à condição desastrada em que se encontra quem ‘odeia’ o irmão, resulta, então, ser o objetivo da argumentação de João (3,14). João protela, então, a sua argumentação, que consegue ressaltar quanto Deus detesta aquele que não ama o seu irmão: é um homicida que em si não tem vida eterna (3,15). A condição de virtude, de santidade de quem vive o amor aos irmãos pode ser avaliada pelo exemplo que Cristo nos deixou (3,16).
            A tipificação que João introduz em 3,17 quer ser o início da argumentação dos versículos que se seguem. Enquanto nos espelhamos num gesto de misericórdia, podemos melhor compreender que devemos abraçar o mandamento do amor aos irmãos incluindo todos os aspectos do seu dinamismo (3,18). No amor ao irmão está a perfeição da nossa vida diante de Deus. É verdade que nunca seremos perfeitos diante dele. O importante é que ele esteja satisfeito com a nossa atitude (3,20). Na condição de quem vive realmente segundo a verdade, teremos toda confiança em Deus.
3,22  E tudo o que lhe pedimos recebemos dele, porque guardamos seus mandamentos e fazemos o que lhe é agradável. Jo 14,13-15 ajuda a entender esse ponto.
3,23 Este é o seu mandamento. A vontade daquele que conhece todas as coisas (v. 20).
3,23  Crer no nome do seu Filho Jesus Cristo Trata-se da nossa adesão de fé à Palavra que se fez carne, condição da nossa filiação divina (Jo 1,12).
3,23 ... e amar-nos uns aos outros. É o teste do nosso conhecimento de Deus (Jo 15,17).
3,23... conforme o mandamento que ele nos deu. Jo 13, 34
3,24 Aquele que guarda seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele. Jo 13, 35. O termo “permanecer”, em Jo 15, indica especificamente a presença do Espírito que é mantida pela observância dos mandamentos.
3,24 ... e nisto reconhecemos que ele permanece em nós, pelo Espírito que nos deu. Deus faz sua morada naqueles que crêem em Jesus, Filho de Deus, entendem a necessidade da purificação dos pecados e a observância dos mandamentos de Cristo, condição de caridade. A presença não é física, como poderiam insinuar as metáforas que a ilustram. Ela é dinâmica. Nós estamos em Cristo, permanecemos nele, enquanto cremos nele, vivemos a adoção filial que nos mereceu, observamos os seus mandamentos. O Pai faz em nós sua morada enquanto vivemos a nossa condição filial em Cristo. O Espírito age enquanto observamos os mandamentos de Cristo (Jo 14,15-17). Por ele produzimos muitos frutos (Gl 5,22s). A explicação desse versículo vem logo em seguida. Pela palavra gancho “amor”, João ligou a retomada sobre o “novo mandamento”, à retomada sobre a purificação dos pecados. Agora, a retomada sobre o “testemunho do Espírito” é feita com 3,24. Isto nos ajuda a entender quanto a doutrina de Jesus depende do testemunho dos Apóstolos que garante a mensagem de Jesus em toda a sua integridade, seja quanto à importância da purificação dos pecados como a observância dos mandamentos de Cristo Jesus para guardamos a vida eterna em nós.


(11) 1Jo O testemunho do Espírito (2,18-28). Primeira retomada: sua importância (4,1-6).
            Paráfrase.  É preciso discernir entre o verdadeiro espírito de profecia e o falso que se manifesta em muitos falsos profetas. Eles não têm o Espírito de Deus porque negam que “Jesus Cristo veio na carne”. Pelo testemunho do Espírito que está em nós, maior do que o espírito dos que são do mundo podemos vencer os anticristos. Temos certeza que os que conhecem a Deus nos ouvem. Não nos ouvem os que não o conhecem.
            Análise.  João já se estendeu sobre o testemunho do Espírito, quando apresentou o problema dos anticristos em 2,18-28. Agora sublinha a superioridade do testemunho do Espírito que está nele, nos outros Apóstolos e em todos aqueles que estão em comunhão de fé com eles. Os falsos profetas têm o espírito “que está no mundo” (4,4). Trata-se do espírito do erro que não pode resistir ao Espírito da Verdade. João fala aos cristãos na força do testemunho do Espírito que sabe estar nele e nos outros Apóstolos, em virtude da vocação e missão recebida de anunciar aquilo que viram, ouviram, contemplaram e apalparam e que o Espírito Santo lhes fez entender (5,20). Compreendemos, agora, que o exôrdio da Carta tinha o intuito claro de embasar não somente a argumentação sobre a natureza da vida cristã, como também a exortação a se ater ao testemunho do Espírito, suscitado no fiel pela da pregação apostólica.
            Comentário
            Aquela certeza que se manifestava desde o exôrdio e que tinha encontrado uma primeira explicação no caso dos anticristos, aqui se manifesta de forma enfática porque é exatamente aquilo que negam os anticristos, mas que   os Apóstolos,  professam, que é o fundamento da sua convicção. Foi  pela ação do Espírito Santo que a ela chegaram. Quando poderiam ter eles pensado ser Jesus a Palavra da vida, o “Unigênito Deus” que se manifestou? Por isso podem declarar que “Todo aquele que não confessa Jesus não é de Deus” (4,3).

4,1 Amados Nesse apelo ecoa, mais uma vez, o ardente desejo do Apóstolo, embutido na exortação inicial: “E isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa” (1,4).
4,1 ... não acrediteis em qualquer espírito Uma vez que o fiel dá sua adesão de fé àquilo que ouve dos Apóstolos que falam segundo o testemunho do Espírito, pelo fato de que ela foi provocada nele pelo mesmo Espírito, qualquer outra explicação sobre a doutrina aprendida dos Apóstolos deve ser descartada.
4,1 ... mas examinais os espíritos É preciso aplicar uma análise atenta naquilo que esses espíritos estão anunciando, para ver o quanto avançam em relação àquilo que os Apóstolos proclamaram (2Jo 9).
4,1 ...  para ver se são de Deus O ponto de partida para a análise é a doutrina que os Apóstolos anunciaram e que os fiéis acataram movidos pelo Espírito, claro sinal da sua origem divina.
4,1 ...  pois muitos falsos profetas vieram ao mundo Essa afirmação de João estabelece que os que diferem da doutrina que os Apóstolos anunciaram não são de Deus. Os Apóstolos têm certeza que dão testemunho em nome de Deus, porque chegaram à compreensão da verdade que anunciam iluminados pelo Espírito que é a Verdade. Lembram aos fiéis que foi segundo o mesmo Espírito que deram a sua adesão de fé à mensagem que eles anunciaram. Os que negam a necessidade da purificação dos pecados, da observância dos mandamentos de Cristo e a condição divina do mesmo, não falam segundo o Espírito de Deus.
4,2 Nisto reconhecemos o Espírito de Deus João está para anunciar o critério para distinguir entre espírito e espírito.
4,2 ...  todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus  É a verdade à qual chegaram os Apóstolos, na força do Espírito da Verdade que Jesus prometeu e enviou. Portanto, são de Deus, os que guardam a sua comunhão de fé com os Apóstolos que professam ser Jesus o Cristo, o Filho de Deus, a Palavra da vida que se manifestou na carne.
4,3 ... e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus É a conclusão da argumentação de João, à qual convida os fiéis a dar a sua adesão.
4,3 ...  é este o espírito do anticristo Aquele que se nega a aceitar que Jesus ser o Filho, o Cristo de Deus, é um anti-Cristo, que os Apóstolos, em virtude do testemunho que está neles, não podem reconhecer ser um espírito que fala em nome de Deus..
4,3 Dele ouvistes dizer que ele virá Paulo, em 1Tss fala da sua vinda, em termos apocalípticos. João mostra de que forma a figura se realiza.
4,3 ... e agora ele já está no mundo Os homens que, depois de ter acolhido o testemunho dos Apóstolos, foram além do seu ensinamento, proclamando que Jesus não é o Cristo, constituem-se no Anticristo.
4,4 Vós, filhinhos, sois de Deus João lembra com ternura o momento da sua adesão à pregação apostólica e a unção que receberam, pela qual deram sua adesão à doutrina dos Apóstolos e acreditaram que Jesus é o Cristo.
4,4 ... e vós os vencestes Na força do Espírito serão sempre vencedores.
4,4 Porque o que está em vós O testemunho que claramente vem de Deus
4,4 ... é maior do que aquele que está no mundo O testemunho que surgiu no espírito dos que após ter acolhido a pregação apostólica, anunciaram a sua própria doutrina, tem sua origem de um espírito que renega o que antes abraçou.Trata-se de uma convicção certamente inferior àquela que o Espírito da Verdade suscitou pela pregação dos que têm absoluta certeza que chegaram a ver claramente que Jesus era o Cristo, o Filho de Deus.
4,5 Eles são do mundo Eles pensam segundo o homem terreno.
4,5 por isso falam segundo o mundo Falam como aqueles que são da terra.
4,5 ... e o mundo os ouve Quem não pensa segundo a fé e sim, conduzido por convicções humanas, dá a sua adesão.
4,6 Nós somos de Deus O discurso dos apóstolos nasce de uma ação direta do Espírito, porque deram a sua adesão de fé à mensagem de Jesus, em virtude da sua ressurreição e da moção do Espírito. Os Apóstolos que foram constituídos testemunhas da Palavra da Vida que se manifestou, são o órgão necessário para que os que ouve as suas palavras, recebam, por sua vez, a unção do Espírito.
4,6  Quem conhece a Deus nos ouve Os que chegaram à plena comunhão com Deus, em virtude da sua adesão ao testemunho dos Apóstolos, que lhes mereceu a unção do Espírito, sempre reconhecerão que estarão no Verdadeiro se estiverem em comunhão de fé com eles.
4,6 ...  quem não é de Deus não nos ouve Os que renegam a fé, por renegarem a verdade recebida pela ação do Espírito da Verdade, perdem a condição de estar em sintonia com a doutrina apostólica.
4,6 Nisto reconhecemos o Espírito da Verdade e o espírito do erro É a frase conclusiva da argumentação do Apóstolo. É da Verdade todo aquele que dá a sua adesão àquilo que o Espírito enviado por Jesus revelou aos Apóstolos e a todos aqueles que estão em comunhão de fé com eles. São guiados pelo espírito do erro todos aqueles que não estão em comunhão de fé com os Apóstolos, condição necessária para estar em comunhão com o Espírito que é a verdade.


7 de Janeiro Tempo do Natal
            Reflexão (3,22-4,6)
                        Embora v.22 esteja ligado à argumentação anterior, ele faz parte, também, da nova argumentação, que é uma retomada sobre o Espírito, de quem João falou, implicitamente, no exórdio, e manifestamente em 2,18-28. Por esta retomada chegamos a entender que é o Espírito Santo aquele que conduz os Apóstolos na sua missão de anunciar e testemunhar e que lhes dá plena segurança, a ponto de João declarar que somente os que estão em comunhão de fé com eles estão em comunhão de vida com o Pai e o seu Filho Jesus Cristo. Pelo Espírito que eles receberam e que os fiéis têm em si a partir da sua adesão de fé à doutrina que pregaram, sabem, com toda certeza que Jesus é o Cristo, o Filho que veio na carne e que a observância do mandamento novo que lhes deu é condição de vida eterna. Os que negam as verdades que ouviram dos Apóstolos estão tomados pelo espírito do erro porque foram além daquilo que os Apóstolos ensinaram, levados por argumentações humanas. O seu pensamento, confrontado com o pensamento dos Apóstolos resulta ser de nenhum peso, um ensinamento falso. Falta-lhes o embasamento que está nos Apóstolos que, lembrados de tudo pelo Espírito, chegaram a toda Verdade. Neles está o testemunho “a respeito do pecado, da justiça e do julgamento” (Jo 16,8-11). Os que se atêm ao testemunho dos Apóstolos, vencem o testemunho dos falsos profetas que falam segundo o pensamento da terra. É o mundo que os escuta.
           
 (12) Vida cristã (I)    Paráfrase (4,7-5,12)

A vida cristã é vida de amor aos irmãos. Permanece em Deus e o conhece aquele que ama o irmão. Aquele que não ama deixa de permanecer e conhecer a Deus (vv. 7-8).
            Deus, que é amor, manifestou o seu amor enviando o seu Filho Unigênito como vítima de expiação dos nossos pecados (vv. 9-10).
            Por isso devemos nos amar. Aliás, é dessa forma que contemplamos a Deus, porque permanece em nós (vv. 11-12). Esse é o sentido de “nos tornarmos sua morada”.
            A segunda condição para permanecermos em Deus é guardar fidelidade ao Espírito que recebemos. Por ele contemplamos e testemunhamos que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo (vv. 13-15).
            Reconhecemos, portanto o amor de Deus e nele acreditamos: Deus é amor (vv. 9-10), aquele que permanece no amor (vv. 11-12) permanece em Deus (v. 16).
            Permanecemos em Deus quando cremos que Jesus é o Filho de Deus, quando observamos os mandamentos que nos deixou e quando amamos os irmãos.
            Atingimos a perfeição do amor quando expelimos o temor porque, então, somos, desde já Aquele que veremos face a face (vv. 17-18).
            Amemo-nos, portanto, nos espelhando no amor que Deus manifestou. Não ama a Deus quem não ama o seu irmão porque não poderá vê-lo se não ama o irmão que vê (vv. 19-21).
            Em resumo, é estirpe de Deus quem crê que Jesus é o Cristo. Nessa caso ama ao que gerou e aquele que dele nasceu (5,1)
            Amamos os filhos de Deus quando amamos a Deus e guardamos os mandamentos (v. 2).
            Pela observância dos mandamentos, enquanto amamos os irmãos, amamos a Deus e vencemos o mundo (vv. 3-4a).
           
A vida cristã tem o seu fundamento na fé. Alcançamos a perfeita caridade quando promovemos a fé que nos levou a crer que Jesus é o Filho de Deus. A fé nele nos leva a observar os seus mandamentos, condição de amar verdadeiramente os irmãos(v. 5b).
Jesus veio no poder do Espírito para que vivamos a partir do batismo. É o Espírito que disso dá testemunho em nós. Cristo Jesus, com a sua Morte, fez com que o Espírito nos purificasse pela Água.
O testemunho do Espírito está em nós; primeiramente nos Apóstolos e depois, pela sua pregação, nos fiéis. Esse testemunho é maior que qualquer testemunho humano. Ele está em todos aqueles que chegaram a crer que Jesus é o Filho de Deus (v. 9-10a).
Os que deixaram de crer estão renegando o testemunho que Deus, pelo Espírito, que é a Verdade, neles suscitou. O exôrdio da Carta assim resume tudo: Deus nos deu a vida eterna e esta vida está no Filho (1,2). Quem tem o Filho, tem a vida (v. 12).
A carta foi escrita para que os fiéis guardem a vida eterna que alcançaram pela fé na pregação dos Apóstolos, firmes no testemunho que o Espírito suscitou neles. Pelo Espírito crêem no Nome d o Filho de Deus.


Vida cristã (II) Caridade (4,7-5,4a).

4,7 Aquele que ama o irmão tem em si o amor que está em Deus, que o torna estirpe de Deus e seu conhecedor.
4,8 Aquele que não ama não chega a “conhecer a Deus”, porque ele é Amor.
4,9 Deus mostrou o seu amor por nós enviando o seu “Filho único”. Não se importou com a sua humilhação e morte de cruz, visando somente a nossa filiação divina.
4,10 Deus revelou o seu amor enviando o seu Filho que se tornou vitima de expiação pelos nossos pecados.


8 de Janeiro Tempo do Natal
            Reflexão (4,7-10)
            A vida cristã é “amor aos irmãos” que reflete em nós o amor que está em Deus. Quem não ama, portanto, não conhece a Deus porque nele não vive a vida de Deus. Esse é o tema que João desenvolverá, apresentado  de forma positiva em 4,7 e de forma negativa em 4,8. O ilustra o quadro representado em 4,9-10. Vemos Deus no ato de enviar ao mundo o seu Filho, o Amado, e, em seguida, esse mesmo Filho que se torna vítima de expiação pelos pecados dos homens. O quadro ilustrativo do amor de Deus tem seu comentário em Rm 5,6-8. Nessa perspectiva, o Reino se realiza enquanto na Cidade celeste entram aqueles que venceram o Dragão lavando suas vestes no Sangue do Cordeiro (Ap 12,11; 7,14). Eles triunfam com a Testemunha fiel, o Primogênito entre os mortos, o Príncipe dos reis da terra. João expressa essa sua convicção dizendo: “Eu João, vosso irmão e companheiro na tribulação, na realeza e na perseverança em Jesus” (1,9). Jesus encontrou, para a sua humanidade, o caminho da sua realização na elevação de cruz. Realizou o máximo do amor pela entrega da sua vida em favor dos irmãos (Jo 15,13). Esse mesmo caminho ele quer que os seus discípulos percorram para participar da sua Glória.


4,11 O nosso amor deve estar alinhado ao amor com que Deus atua, pelo dinamismo do amor aos irmãos.
4,12a Chegamos a contemplar a Deus...
4,12b quando nos amamos uns aos outros.
4,12b Deus, então, permanece em nós porque em nós se concretizou o seu amor.
4,13 Nisto reconhecemos que permanecemos nele e ele em nós: ele nos deu seu Espírito O fruto da perfeita caridade é o Espírito com as suas manifestações. Delas, a mais alta é a do próprio amor ao próximo.
4,14 E nós contemplamos e testemunhamos que o Pai enviou seu Filho como Salvador do mundo Esse é o primeiro fruto que o Espírito produz em nós e fruto  que  amadureceu a partir da conversão, pela pregação daqueles que o Espírito levou a reconhecer em Jesus o Cristo Filho de Deus.
4,15 Os que se atêm à pregação dos Apóstolos e, pela unção do Espírito que receberam, professam ser Jesus o Filho de Deus, têm em si a vida eterna.
4,16 A fé, contudo, é o ponto de partida para chegar a permanecer em Deus. Nasce do impulso do Espírito. É o início da caridade que tem seu desenvolvimento no amor ao irmão através da purificação dos pecados e a observância dos mandamentos.
4,17-18 Teste da perfeita caridade será a falta de temor com que enfrentaremos o julgamento, porque não há temor no amor.


9 de Janeiro Tempo do Natal
            Reflexão (4,11-18)
A amor que vem de Deus, somente se repete em nós quando vivemos o dinamismo do amor aos irmãos (v.11). Essa é a forma pela qual contemplamos a Deus, isto é, vivemos em comunhão com ele (v.12). Tudo isto ocorre pela ação do Espírito que Deus Pai efundiu abundantemente após ter sido merecido pela imolação que Cristo Jesus fez de si (v.13). Pelo Espírito, os Apóstolos puderam reconhecer o Filho na condição de Senhor e Deus, e pela suas chagas, que era o Salvador do mundo (v.14). Quando, portanto, pelo Espírito, em união com os Apóstolos, reconhecemos em Jesus o Filho de Deus, Deus permanece em nós e nós em Deus (v.15). Pelo cultivo da nossa fé, através do dom do entendimento e dos outros dons, experimentamos o amor de Deus pela prática da purificação dos pecados e da observância dos mandamentos de Cristo (v.16). O sentimento de plena confiança  é sinal de perfeita caridade em nós (17) porque “não há temos no amor” (v.18). 

4,19-21 Essa exortação final conclui a retomada sobre o mandamento do amor. Por ela, João tentou motivar o amor ao irmão à luz do amor que Deus manifestou pelo Filho, que deu a vida por nós.
5,1-4a Síntese
Vida cristã é vida dos que creem em Deus. Por isso “andam na luz”: “purificam-se de toda injustiça”, “guardam os mandamentos de Cristo”. São estirpe de Deus, chamados a ver a Deus. Por isso não pecam porque o pecado voltaria a escravizá-los ao espírito do mal, o que os tornaria novamente iníquos. Apresentada a vida cristã e a sua importância, João, ilustra a sua excelência. É vida de Deus em nós. Quem ama o irmão ama como Deus amou. Quando o cristão entra em plena comunhão de vida com Deus, pelo Espírito, está em condição de contemplar a vida de Caridade que está em Deus. Nele está, também, a plena confiança para o dia do julgamento. Em 5,1-4, João resume a natureza da vida de amor que está no cristão: “O fiel é semente de Deus que está em comunhão de vida com “O que gerou” e com “O Gerado por Deus” (5,18). Ama os irmãos porque observa os mandamentos. É estirpe de Deus mais forte que o mundo. 

         Análise
5,1 Todo o que crê que Jesus é o Cristo nasceu de Deus A exegese está em Jo 1,13
5,1 ... e todo o que ama ao que gerou ama também o que dele nasceu Isto, a princípio, porque a vida de fé implica o dinamismo do amor aos irmãos.
5,2 Nisto reconhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e guardamos os seus mandamentos É a explicação de 5,1, na sua segunda parte. O amor aos irmãos não pode prescindir da nossa fé em Jesus Cristo. Ele se concretiza pela observância dos seus mandamentos (Jo 14)
5,3 Pois este é o amor de Deus: observar os seus mandamentos É a forma (3,24) pela qual a vida divina permanece em nós (4,12) e nós  conhecemos a Deus (4,8).
5,3 E os seus mandamentos não são pesados Estas palavras introduzem o conceito de vitória sobre o mundo, que a observância dos mandamentos nos propicia. A explicação está, mais uma vez em Jo 14.
5,4 Pois todo o que nasceu de Deus  João está se referindo a tudo aquilo que explicou de 5,1 até 5,3. Aquele que tem em si a vida eterna, isto é permanece
 em Deus porque crê que Jesus, é o Filho de Deus e observa os seus mandamentos...
5,4a ... vence o mundo O mundo é a realidade perversa que chega a odiar a Jesus e merece a sua rejeição. O fiel não pode compactuar com ele, contudo, dele se liberta somente pela fé em Jesus Cristo, acatando, no Espírito, a sua doutrina.


 Vida cristã (III)
b) Fé (5,4b-13)
5,4b E esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé  É o segundo tema da Vida cristã. A nossa fé é vitoriosa, isto é, nos liberta dos tentáculos do Maligno que aprisionam o mundo, em virtude da nossa adesão à Pessoa divina de Jesus e à sua mensagem.
5,5 Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?  De fato, guardando os mandamentos de Cristo Jesus, nos livramos das concupiscências do mundo. Dessa forma, temos em nós o amor de Deus.
5,6 Este é que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo Vemos nessa afirmação uma alusão a Jo 3, onde Jesus anuncia a sua Morte que dará origem a uma regeneração do homem pela ação do Espírito, que a água do batismo simboliza. Quando Jesus morre na Cruz, o quadro de Jo 19,34 retrata essa verdade: Jesus é o Cordeiro imolado no altar do Novo Templo do qual sai a água da Vida (Ez 47).
5,6 Não com a água somente, mas com a água e o sangue Jesus se caracteriza como realizador da profecia, tipificada pelo precursor. João Batista negou ser o Cristo, afirmando que batizava somente pela água. Aquele que viria após ele, mas que existia antes dele, sobre quem repousa o Espírito, é o Filho de Deus que batiza no Espírito. Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. O Filho do Homem, a Gloria de Iahweh, pelo sangue do seu sacrifício, lava os nossos pecados. A água passou da condição de sinal de ablução a sinal sensível da graça invisível.
 5,6 E é o Espírito que testemunha porque o Espírito é a Verdade O Espírito, que é a Verdade, disso dá testemunho pelo o Apóstolo que chegou a entender claramente o que viu aos pés da Cruz. Viu e acreditou que Jesus é o “Eu sou” (Jo 8,24.28)
5,7-8 Porque três são os que testemunham, o Espírito, a água e o sangue Pelo Espírito, surgiu em João o testemunho diante da Morte de Jesus, ao compreender o sentido da água e do sangue que saiam do lado direito do Cordeiro pascal transpassado.
5,9 Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior. João está se referindo ao testemunho que o Espírito suscitou nele, por quem chegou a toda verdade, seja por ter compreendido as Escrituras, seja por ter compreendido o que Jesus disse a Nicodemos (Jo 3).
5,9  Pois este é o testemunho de Deus: testemunho que deu de seu Filho Não há dúvidas acerca do testemunho de Deus que João proclama. Pelo Espírito, dá testemunho do valor redentor da Morte de Cristo: a água e o sangue que saem do lado direito de Cristo morto na Cruz (Jo 19,34), simbolizam o Espírito merecido pela imolação, enquanto realizam a profecia de Ez 47,1.
5,10 Aquele que dá a sua adesão de fé ao testemunho dos Apóstolos experimenta em si o testemunho do Espírito.
5,10b Aquele que não acolhe o testemunho do Espírito vai contra o Verdadeiro, Aquele que, pelo seu Espírito, está dando testemunho do seu Filho.
5,11 Este é o testemunho do Espírito em nós: Deus nos deu a vida eterna e esta vida está no seu Filho. É na base desse testemunho que João e os outros Apóstolos chegaram à fé proclamada em 1,1-3. Dela desejam que os fiéis não se afastem, porque é condição de vida eterna (1,4).
5,12 Quem acolhe o Filho tem a vida (Jo 1,13). Quem não acolhe o Filho de Deus a perde (Jo 3,18).
5,13 Isto vos escrevo: saibam todos os que crêem na Vida que se manifestou, que eles têm a vida eterna, porque acreditaram no Nome do Filho de Deus. Jesus é o “Eu sou”. Nele se manifestou a Glória da Divindade. Nela nós cremos em virtude das obras que realizou.
        
Comentário
         No exôrdio, João lembrou a maneira pela qual os Apóstolos chegaram à fé na divindade de Jesus. Foi no momento em que ele mostrou as suas chagas gloriosas. Aqui revela qual foi a sua experiência. Pelo que viu no Calvário, acreditou. Isto acontece sob a ação do Espírito que é a Verdade (5,6b)
            Diante da forma pela qual o Espírito agiu nele,aquilo que os anticristos pregam não tem peso algum. Os fiéis, diante disso, advertem que também os outros pontos da mensagem de Jesus são ensinados pelos Apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo. Se é fundamental confessar que Jesus é o Cristo, é também condição de vida eterna andar na luz praticando a purificação e os mandamentos de Cristo. É pelo Espírito que compreendemos e contemplamos admirados que “o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo: aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele e ele em Deus “(4,15). Mas é também pelo Espírito que “temos reconhecido o amor de Deus por nós e nele acreditamos” (4,16). Por isso permanecemos no amor pela observância dos mandamentos; e nisto reconhecemos que Deus permanece em nós pelo Espírito que nos deu” (3,24; 4,13).



                Tema:  “O Espírito dá testemunho em nós” 
                                         
            Demais insistente e repetida é a afirmação de João, que encontramos desde o início da sua carta, “E isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa” (1,4), para que ignoremos a importância de descobrir o seu verdadeiro sentido. Quem nos dá a sua explicação de forma cabal é o autor da Carta aos Hebreus, embora de forma muito sintetizada, contudo, nem por isso, diminuída no seu sentido pleno: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; ele o será para sempre! Não vos deixeis extraviar por doutrinas ecléticas e estranhas” (Hb 13,8-9). O v.8 da citação está em relação com aquilo que, na afirmação final da sua argumentação, João nos diz de uma forma clara: “Deus nos deu a vida eterna e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho não tem a vida” (5,12). São palavras que explicitam o conteúdo do exórdio, onde se afirma que a Palavra da Vida é Vida, Vida eterna, que, agora, ajudados pelo autor da Carta aos Hebreus, entendemos que deve ser o conteúdo permanente da nossa fé. O v.9  está em relação com o que João afirma no final da primeira argumentação acerca do testemunho do Espírito, tanto em nós quanto nos Apóstolos: “Agora, filhinhos, permanecei nele, ‘a Palavra da Verdade em quem, tendo crido, fostes selados pelo Espírito da promessa, o Espírito Santo’ (Ef 1,13), para que, quando ele se manifestar, tenhamos plena confiança e não sejamos confundidos por estarmos longe dele, na sua Vinda” (1Jo 2,28). O fiel que persevera na comunhão de fé com os que testemunham, no Espírito Santo, que Jesus é o Filho leva os Apóstolos à alegria plena.
            Em 1Jo 4,1-6 vemos João proclamar de forma enfática o valor do testemunho dos Apóstolos acerca da “Palavra da Vida, a Vida, Vida eterna”, diante do perigo dos anticristos que tentam desencaminhar “os que são de Cristo porque o Pai lhos deu” (Jo 17). A forma é enfática e mostra a percepção clara do estrago que uma doutrina eclética e estranha pode provocar, uma vez que neutraliza a própria ação do Espírito Santo: “Nós somos de Deus. Quem conhece a Deus nos ouve, quem não é de Deus não nos ouve” (1Jo 4,6).
            Dessa forma, a insistente e repetida afirmação de João nos revela a preocupação que levou o Apóstolo a escrever a sua carta, embora, nela, não se limite a defender apologeticamente a importância do Espírito Santo na vida do fiel e da Igreja.  O pecado do fiel que chegasse a negar ser Jesus o Filho de Deus já seria algo de extremamente grave. Ele tornaria, todavia, a sua situação desastrosa porque o fiel perderia a comunhão de vida com o Pai e o Filho, uma vez que perderia a comunhão de fé com os Apóstolos (1,3; cf. 2Jo 9).
            A importância do Espírito em nós tem a sua argumentação mais profunda em 1Jo 5,5-12, que acaba justificando duma vez a insistência de João em afirmar o motivo do seu escrito. Aquele Espírito que levou o fiel a dar a sua adesão de fé a tudo aquilo que os Apóstolos pregaram, é Aquele que, juntamente com a água e o sangue que jorraram do lado direito de Cristo na Cruz, dá testemunho. A água e o sangue testemunham, aludindo a Ez 47, que Jesus é o Cordeiro imolado no altar do Templo, do qual jorra a Água da Vida que renova as águas mortas. O Espírito testemunha, nos Apóstolos e nos fiéis, que Jesus é o Filho de Deus. Foi o testemunho que o Espírito da Verdade (1Jo 5,6) suscitou em João diante do Cristo crucificado e que o mesmo Espírito suscita nos fiéis, em virtude do testemunho de fé dos Apóstolos, acompanhado “de sinais, de prodígios e de vários milagres e por dons do Espírito Santo, distribuídos segundo sua vontade” (Hb 2,4).




(15) Parte conclusiva (5,14-21)
           
Vida cristã (2,3-11; 3,11-24; 4,7-5,4a). Terceira retomada (5,14-17).
            a) O teste da sua perfeição (5,14-15)
            Paráfrase.  Deus ouve os que lhe pedem um favor segundo a sua vontade. Mas isto acontece quando a sua vida, em nós, é perfeita.
            Análise.  Quando, em nós a vida divina se tornou perfeita no amor, porque vivemos em comunhão uns com os outros, pela perfeita caridade e comunhão de fé com os Apóstolos, somente saberemos pedir o que necessitamos para realizar obras que glorifiquem o Filho e, por ele, o Pai. Certamente isto nos será concedido. E, uma vez concedido, nos mostrará que estamos em perfeita comunhão de vida com Deus.
            b) Oração pelos que pecam (5,16-17)
            Paráfrase.  Quem ama o irmão reza pelo irmão que não vive à altura da sua vocação. A oração é inútil em favor daqueles que já não são mais dos nossos. Se tornaram anticristos, renegando o testemunho do Espírito da Verdade.
            Análise.  Para João, o pecado é tão prejudicial à vida do cristão que, no seu amor por ele, deseja que todos aqueles que têm em si o amor perfeito rezem por aqueles que deixaram de se purificar no sangue de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, não nutre esperança alguma de salvação por aqueles que deixaram de ser dos nossos, “porque não eram dos nossos” (cf. Hb 6,4-8).
           
Síntese final
5,18 Nós sabemos que todo aquele que nasceu de Deus não peca (3,6.9). Na condição de filhos adotivos, nossa natureza divina está diametralmente em oposição com o pecado. Enquanto vivemos a purificação dos pecados e a observância dos mandamentos,  o Espírito, que o Filho Cristo Jesus mereceu, permanece em nós (3,23-24)”. Quando deixamos de “andar como ele andou” (2,6) recaímos na condição de quem nunca viu nem conheceu a Deus (3,6.10).
5,18 O Gerado por Deus o guarda A purificação é o processo dinâmico que visa estabelecer de forma sempre mais definitiva a vida eterna em nós. A observância dos mandamentos de Cristo é a condição de estarmos nele. Nessas condições, Aquele que nos reconciliou com Deus, pela sua palavra que permanece em nós, nos torna vencedores do Maligno.
5,19 Nós sabemos que somos de Deus Enquanto atribuímos aos Apóstolos essa afirmação, vemos sintetizado nela tudo aquilo que eles tentaram nos dizer da sua transformação, pela ação do Espírito, pela prática da purificação e do amor aos irmãos. Enquanto a escutamos como uma proclamação da condição de todo e qualquer fiel que deu a sua adesão de fé à sua pregação, reconhecemos o apelo do Apóstolo a viver na fidelidade à doutrina abraçada
5,19 ...  e que o mundo inteiro está sobe o poder do Maligno  
5,20 Quem nasce de Deus porque acolhe a Palavra pelo anúncio dos Apóstolos, recebe, do Espírito, os seus sete dons que são capazes de levá-lo à plena união com Deus. Do entendimento, pelo Espírito,  chegamos ao conhecimento. Pela observância dos mandamentos, nos tornamos morada do Pai e do Filho, no Espírito. O Caminho é Cristo. Permanecendo nele, nos tornamos seus discípulos e nos amamos uns aos outros (Jo 15).
5,20  Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu o entendimento para conhecermos o Verdadeiro. A Encarnação da Palavra da Vida é o Caminho da Verdade com a qual estabelecemos plena comunhão de vida pelo Espírito quando guardamos os mandamentos de Jesus Cristo.
5,20  Estamos, agora, no verdadeiro, no seu Filho, Jesus Cristo Mantida a nossa identidade, somos, agora, filhos adotivos no Amado. Com Cristo formamos um só corpo e, santificados pelo seu Espírito da Verdade, estamos em comunhão de vida com o Pai.
5,20  Este é o verdadeiro Deus e vida eterna O Deus cristão é trinitário e constituído pelo Filho na condição de Palavra que veio na carne. Ele é o “Eu sou” do próprio Deus, na condição do homem Cristo Jesus. Nele está a “vida eterna” (v.11) para todos os que crêem nele.
5,21 Filhos, não deixeis que a vida idolátrica vos contamine É vida idolátrica a rebeldia (1Sm 15,23), a cupidez do ouro (Cl 3,5),  servir às paixões da carne e a ambição desmedida (1Pd 4,3). “Mas agora, libertos do pecado e postos a serviço de Deus, tendes vosso fruto para a santificação e, como desfecho, a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6,22; cf. 1Ts 1,10).


         Tema  “Filhinhos, não deixei que a vida idolátrica vos contamine”                    
            A exortação final da primeira carta de João, “Filhinhos, não deixeis que a vida idolátrica vos contamine” (1Jo 5,21), nos permite estabelecer a posição antagônica de dois pólos: o da verdadeira religião e o da falsa religião. Gn 3 é a reflexão sapiencial que ilustra essa polaridade que, por sua vez será explicitada ao longo de toda a Escritura sagrada e que terá a sua definição nas palavras de Jesus nos discurso da Última Ceia, isto é no momento que imediatamente precede a sua Morte redentora: ”O príncipe deste mundo nada pode contra mim. Eu vos digo tudo isso para que saibais que amo o Pai”. Essas palavras nos revelam que Jesus é o verdadeiro adão que realiza em si a virtude da verdadeira religião, enquanto os outros ”avermelhados”, os "tirados do barro", acabam sob o domínio do Maligno,a quem prestam o seu culto com as suas obras más. Jesus vive a verdadeira religião na santidade (Jo 8,46), separado do mundo e atuando uma imolação que o santifica, que o torna o sacrifício de expiação, a vítima, portanto, separada para Deus; condição que lhe permite alcançar as condições da sua máxima glorificação. Essa sua ação o torna o Sumo sacerdote que entrou no santuário do céu com o seu sangue, como lembra a Carta aos Hebreus. São Paulo, escrevendo a Timóteo, comenta dessa forma a condição de Jesus, o Filho que, realizada a purificação dos pecados sentou-se à direita da majestade de Deus: “Temos um único mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus que se deu em resgate por todos” (1Tm 2,6 ).
            A religião que o homem decaído persegue é exatamente oposta. Ele é a criatura, criada “à imagem e semelhança do Criador”, na qual, como primeira manifestação do seu espírito, desponta a ambição desmedida que o leva à rebelião, numa aspiração insensata de ser igual a Deus. A desobediência o despoja, de imediato, da sua condição de herdeiro do reino. Expulso do Éden, a sua conduta, sempre manchada pela desobediência ao Criador, que a narrativa do pecado de Caim caracteriza, o leva a se tornar uma estirpe da qual Deus se arrepende: “O homem é só carne, vou varrê-lo da face da terra” (Gn 6,5-7).
            Essa condição, da qual Deus, na fidelidade ao seu amor, porque ele é a Bondade, quer libertar a sua criatura, está resumida no termo mundo. À luz de Gn 3, é visto como que dominado pelo Maligno, cuja descrição está em Ap 12, onde é lembrado com todos os seus epítetos. A figura do Dragão que é, também, o Diabo, Satanás, a Antiga Serpente, 
sugere o termo idolatria. Temos, dessa forma as expressões, que caracterizam a situação em que se encontra o homem. Ele é o mundo subjugado ao Maligno. O Diabo é príncipe deste mundo, a quem o homem presta o seu culto. O culto tem uma expressão claramente idolátrica quando por ele definimos a atitude, no homem, de adoração a ídolos. Idolatria, todavia, é, também, toda outra forma de pecado. Isto é evidente quando ouvimos Paulo definir idolatria a cupidez do ouro (Cl 3,5). Mas o Apóstolo São João, na sua Carta, nos adverte que voltamos a ser do diabo todas as vezes que pecamos (1Jo 3,8), até o pecado nos levar à morte. De fato, é então que, tendo abandonado a purificação dos pecados que promoveria em nós a caridade, voltamos a ser trevas, o mundo no qual não está o amor de Deus, porque subjugados novamente ao Maligno pelos tentáculos das concupiscências da carne, da cupidez do ouro e da soberba da vida (1Jo 2,16).
Para entender o pensamento da 1Jo é preciso relacionar a carta ao Evangelho de João e, mais particularmente, a Jo 14-16, onde se fala de mundo e da vitória de Jesus sobre ele, através do Espírito. Isto, porque os Apóstolos viram em si mesmos a transformação que se operou neles com a ressurreição de Jesus. Receberam o Espírito e, por ele se tornaram capazes de compreender o Mistério do Filho de Deus e, pelo mesmo, viver o amor aos irmãos.
            O termo “mundo” aparece, a primeira vez, em 2,15 e é insistentemente analisado. O mundo deve ser radicalmente negligenciado (cf. Tg 1,27). Quem o escuta é subjugado pelas concupiscências e acaba privado do amor de Deus, porque envereda o caminho do que é falso. É preciso fazer a vontade de Deus porque é então que permanecemos em Deus (2,15-17).
            O termo “mundo” volta a aparecer em 4,1-6 e indica o lugar onde se refugiam os anticristos e aqueles que os escutam. Esses encarnam a forma mais ameaçadora porque com o seu testemunho minam os fundamentos da Vida. Jesus no-la mereceu com a sua Morte. Pelo seu Espírito, os Apóstolos o reconheceram como o Cristo, o Filho. Em virtude do seu testemunho, os fiéis deram a sua adesão de fé à mesma doutrina. Caso deem sua adesão de fé ao testemunho dos anticristos, não tendo mais o Filho, perdem a comunhão de vida com o Pai.
            A vitória sobre o mundo acontece quando vivemos os mandamentos de Cristo, porque é então que a vida de Deus está em nós. Ela é fruto da nossa adesão de fé ao Filho, sob a ação do Espírito.


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